Joseph Estaline
Crónica publicada a 13/07/16 |
A edição em Portugal de “Colosso” (Temas e Debates, 2015) – com o sub-título Ascensão e Queda do Império Americano
– tem um problema irresolúvel de fundo. É que esta obra foi publicada
em 2004. Desde aí, a América em especial e o mundo em geral sofreram
alterações profundas nas variáveis geo-estratégicas, económicas, sociais
e até ideológicas. O império americano de 2015 é muito diferente, de
muitas maneiras, do que era há 12 anos atrás. No entretanto, tivemos um
rol incrível de cataclismos naturais e sobrenaturais que mudaram de
facto a face do mundo. Niall Fergusson escreve num
momento da história que antecede a recessão económica iniciada em 2007, e
respectivas crises das dívidas soberanas e da Moeda Única Europeia; a
Primavera Árabe de 20010-11 e a desintegração de vários estados no Médio
Oriente que se lhe seguiu; a eleição de Barak Obama e consequente
retirada militar do Iraque e do Afeganistão; o surgimento do Estado
Islâmico; os atentados terroristas de Madrid, Londres, Bombaim e Paris; a
instauração de regimes socialistas no Brasil, na Venezuela e na
Bolívia, a institucionalização do cartelismo no México, a morte de Bin
Laden, o marmoto do Pacífico, o terramoto do Japão, etc., etc., etc.
Isto já para não falar da saída do Reino Unido da União Europeia,
fenómeno do género poltergeist que soaria ao Professor Fergusson, em
2004, como uma novela distópica, de enredo excessivamente fantasista.
Por vezes, este abismo cognitivo resulta em favor do autor, que
anuncia e prevê factos que vieram posteriormente a ocorrer; noutras,
resulta em desfavor da obra, no seu todo e principalmente para o leitor,
que não tem culpa de saber coisas desconhecidas em 2004. No prefácio,
por exemplo, Fergusson especula que uma retirada ignominiosa do Iraque
provocará o descalabro do império. Esse descalabro não aconteceu
completamente, mas não deixa de ser verdade que a retirada americana
facilitou, no mínimo, a afirmação militar de Estado Islâmico e a perda
de influência dos EUA no Médio Oriente.
Niall Fergusson, eminente professor de Oxford, Harvard e Standford e célebre documentarista do Channel Four,
procura nesta obra explicar as razões que estão na origem da
incompetência imperial americana. São os Estados Unidos um império? Com
certeza e, na verdade, o maior da história. Mas um império com
limitações inéditas: é que, dadas as origens liberais e libertárias da
sua nação federal, os americanos não gostam de ser ver como
imperialistas. Isto embora, como o autor demonstra abundantemente – e
muito bem acompanhado por outros ilustres académicos, como Yuval Noah
Harari (1) -, a existência de impérios não seja propriamente algo de
negativo na história humana. Pelo contrário, é a ausência de hegemonias
imperiais que leva ao caos e à ruptura civilizacional. Niall Fergusson
argumenta até que, em certos casos de nações falhadas, a invasão
territorial de longo prazo seria muito preferível para a qualidade de
vida dos povos nativos. Estamos assim a milhas do território
politicamente correcto.
Também, mas não só por causa das suas origens libertárias e anti-imperialistas, os americanos gostam de ser ver como a primeira potência global não imperial. O império americano é de governação indirecta, informal e não territorial. A política, nos casos de intervenção em países estrangeiros, tem sido a de criação de governos autóctones, mais ou menos fantoches, desde que cooperem com a filosofia mercantil americana. E, regra geral, quando invadem um país, fazem-no dentro de uma estreita janela temporal. Nunca pretendem de facto a ocupação de longo prazo.
É que, antes de ser um império político e militar, o império
americano é uma iniciativa comercial. A “coca-colonização”, embora
implique 752 instalações militares em mais de 130 países, é uma
gigantesca operação de marketing cultural, que funciona melhor se os
clientes permanecerem vivos, relativamente solventes e cidadãos de um
estado de direito (ou pelo menos com o direito à propriedade minimamente
assegurado). O espírito empreendedor e o poderio militar não fazem
porém um império excepcional: a hegemonia americana tem muito em comum
com os outros 70 impérios da história. E deve ser historicamente
comparado.
No registo confessional em que é redigida a introdução, Niall
Fergusson defende os impérios como forças benignas que impedem o terror
dos pequenos estados contra outros estados, mas também contra os seus
povos. E argumenta a favor de políticas imperiais que intervenham em
estados como a Libéria (“estados fracassados” e/ou “regimes
criminosos”), enquanto recusa carregar o insustentável fardo do homem
branco: “A áfrica subsariana em particular tem empobrecido não
devido à muitas vezes denunciada herança do colonialismo, mas sim a
décadas de má governação desde a independência.”
Logo no seu início mas muito frequentemente no seu decorrer, a obra
traz para as luzes da discussão um factor de declínio civilizacional que
é pouco discutido nos dias de agora, embora tenha reinado sobre o
pensamento filosófico europeu durante séculos: a ausência de uma vontade
de poder. As elites americanas hesitam historicamente perante a
possibilidade do poder global. E esse deficit de vontade de poder pode
muito bem-estar na origem da queda do império.
A Ascensão.
O território dos Estados Unidos, logo após a independência, constituía 8% do actual e, em 1820, existiam apenas 320.000 americanos à face do planeta. A nação é assim, e ironicamente, imperialista logo na sua génese, sendo a conquista territorial do Oeste um primeiro exercício dessa expansão imperial. Apesar de grande parte dos territórios anexados terem sido comprados a franceses, espanhóis, ingleses, mexicanos e russos, foi necessário fazer a guerra com muitos povos e em múltiplos palcos para unificar a nação e os Estados Unidos, se são hoje uma potência militar de primeira grandeza, foi também porque sempre conviveram com violentos e massivos confrontos armados, tanto internamente como nos territórios da sua esfera de influência imediata.
O território dos Estados Unidos, logo após a independência, constituía 8% do actual e, em 1820, existiam apenas 320.000 americanos à face do planeta. A nação é assim, e ironicamente, imperialista logo na sua génese, sendo a conquista territorial do Oeste um primeiro exercício dessa expansão imperial. Apesar de grande parte dos territórios anexados terem sido comprados a franceses, espanhóis, ingleses, mexicanos e russos, foi necessário fazer a guerra com muitos povos e em múltiplos palcos para unificar a nação e os Estados Unidos, se são hoje uma potência militar de primeira grandeza, foi também porque sempre conviveram com violentos e massivos confrontos armados, tanto internamente como nos territórios da sua esfera de influência imediata.
Envolvidos logo no século XIX num movimento comercial expansionista,
de carácter global, os EUA sempre mostraram reticências no que diz
respeito à ocupação territorial típica do colonialismo europeu. A guerra
sanguinolenta com os independentistas nas Filipinas, depois da vitória
fácil frente aos espanhóis, levou à rejeição do modelo convencional e à
preferência pela instalação de “bons governos” que colaborem com os
interesses económicos e geo-estratégicos do Uncle Sam. Mas
enquanto a Nicarágua, Cuba e a República Dominicana corresponderam à
filosofia de tributar sem anexar, mantendo a independência destes países
sob um governo fantoche, já S. Domingos e o Haiti trouxeram mais
complicações, resolvidas com operações militares e intervenção directa
na constituição de regimes e governos, embora ainda assim sem anexação
formal (com excepção das Ilhas Virgens).
Observando o destino tirânico destes e de outros países, o autor interroga-se se a anexação não teria sido preferível. Os somoza
na Nicarágua, Fulgêncio Baptista em Cuba e Tiburcio Andino nas Honduras
(só para citar alguns exemplos) demonstraram que a política de
influência nem sempre resultou na instauração de democracias humanistas e
liberais, tendentes a aceitar a cultura comercial americana e a
promover a qualidade de vida e os direitos fundamentais dos povos
nativos.
As posteriores e consecutivas políticas externas de Hoover, Roosevelt
e Wilson, que visavam a instalação de democracias pró-americanas na
América do Sul, falharam redondamente. A defesa dos interesses mineiros
americanos no México também não foi bem-sucedida. Isto apesar do intenso
empenhamento político e militar da América, testemunhado
desassombradamente pelo General Smedley D. Butler, em 1935:
“Ajudei a fazer do Haiti e de Cuba locais decentes para os
rapazes do National City Bank obterem aí as suas receitas. Ajudei a
saquear meia dúzia de repúblicas centro-americanas para benefício de
Wall Street. O registo dos actos de extorsão é extenso. Ajudei a
purificar a Nicarágua para o banco internacional Brown Brothers entre
1902 e 1912. Levei a luz à República Dominicana para os interesses da
produção de açúcar em 1916. Ajudei a tornar as Honduras “adequadas” às
empresas de frutas da América em 1903. (…) Retrospectivamente, sinto que
até podia ter dado algumas dicas a Al Capone. O melhor que ele
conseguiu fazer foi instalar os seus esquemas em três zonas de uma
cidade. Nós, os fuzileiros, operámos em 3 continentes.”
O imperialismo do anti-imperialismo.
A América assume o império global com o culminar da Primeira Guerra Mundial, mas o seu envolvimento no conflito deveu-se fundamentalmente ao afundamento do Lusitania por um submarino alemão, que matou 128 americanos. E, também, à desastrada política externa alemã, que colocou em causa a integridade territorial dos EUA a propósito de uma pueril aliança diplomática com o México. Pearl Harbour e o 11 de Setembro são, comparativamente, fenómenos semelhantes: mesmo considerando os valores universalistas que decorrem da Constituição americana, a verdade é que o envolvimento dos Estados Unidos em conflitos militares de grande escala dependeu muitas vezes de um directo ataque aos seus interesses, aos seus bens e aos seus cidadãos e raramente de qualquer tipo de altruísmo ideológico.
Aliás, as duas grandes guerras não mudaram em nada o cepticismo com
que os americanos encaram a acção imperial, embora a ameaça do Bloco
Soviético, consequente ao desenlace da Segunda Grande Guerra, tenha sido
levada muito a sério. Isto apesar da União Soviética ter recusado o
modelo colonial que os americanos criticavam até aos seus próprios
aliados.
Mais a mais, o século XX veio demonstrar que os Estados Unidos não
são muito competentes quando precisam de implementar modelos de gestão
territorial. A ocupação do Japão, que implicou o estacionamento de
400.000 homens no seu máximo e nunca menos de 100.000 até 1957, e a
ocupação da Alemanha ocidental, constituíram responsabilidades
financeiramente desastrosas, muito porque os países derrotados não
estavam em condições de pagar a factura. Por um lado, existia uma
vontade objectiva de diminuir as capacidades de produção industrial
destes países, de forma a reduzir a possibilidade de voltarem a
constituir ameaças à paz mundial, mas por outro era necessário criar
condições de prosperidade que lhes permitissem o pagamento das
compensações da guerra, juros das dívidas soberanas e custos da
ocupação. As coisas nunca correram realmente a preceito para os
americanos: “O que era planeado não acontecia. O que acontecia não
era planeado. Não era tanto um império por convite mas um império de
improviso.”
Seja como for, a ajuda americana depois da guerra (incluindo o Plano
Marshall e os largos milhões gastos no Japão) nunca superou os 2% do PIB
e, na altura em que J. F. Kennedy proclamava que estava disposto a
pagar qualquer preço pela liberdade, a ajuda externa do Uncle Sam
desceu abaixo dos 1%. O investimento militar, no entanto, foi sempre
mais significativo e chegou a atingir os 14% do PIB nos anos 50, que
traduziam os gastos tecnológicos da era atómica mas, também, as
exigências financeiras das bases militares instaladas em 64 países em
1967, e 168 intervenções armadas entre 1946 e 1965.
O domínio mundial subsequente às grandes guerras levou os Estados
Unidos a aplicarem de facto políticas imperiais, mas sempre em nome do
anti-imperialismo (neste caso, o imperialismo russo). E a preferência
pela “guerra limitada” foi uma constante, quase sempre com péssimos
resultados. Essa filosofia imperial envergonhada, carregada de políticas
dúbias, teve como resultado derrotas militares (Vietname e Somália),
impasses e compromissos (Coreia), e desastres geo-estratégicos (Médio
oriente).
Com o fim da Guerra Fria, e dado a importância política,
civilizacional e energética da região, a questão era saber se os EUA
intervinham no Médio Oriente sozinhos ou acompanhados. O autor
responsabiliza a proverbial timidez operacional da ONU pelo
unilateralismo americano e afirma, com resoluta lucidez: “o multilateralismo também pode ser menos que esplêndido.”
E se é verdade que os EUA pagam 22% do que a ONU custa anualmente,
sendo seu o primeiro contribuinte, convém também saber que o orçamento
anual das Nações Unidas corresponde àquilo que o Pentágono gasta em 32
horas. Daí que Fergusson conclua que a ONU precisa mais dos EUA do que
os EUA da ONU.
Seja como for, foi a primeira guerra do Iraque, legitimada pela
Organização sediada em Nova Iorque, que levou a um reforço da presença
do Tio Sam nesta conturbada região do mundo. E foi precisamente essa
presença que primeiro acendeu o ressentimento de certos sectores
islamitas.
A incompetência americana para exercer o domínio militar que a sua
tecnologia e disponibilidade financeira de facto permite, em paralelo
com a total incapacidade das Nações Unidas para resolverem a esmagadora
maioria dos problemas que se lhe deparam, é evidente na análise dos
confrontos contemporâneos. Em Mogadíscio, como no Haiti, os americanos
mostraram que não estão preparados para sofrer baixas. E nos Balcãs –
enquanto a ONU permitiu e assistiu impávida aos genocídios e alemães,
franceses e ingleses contribuíam também e muito desajeitadamente com
achas para a fogueira, a administração Clinton decidiu tomar uma decisão
que prometia uma possibilidade de zero baixas: a NATO bombardeou os
sérvios, matando mais de 30.000 pessoas e deslocando 1 milhão, entre
Dezembro de 98 e Maio de 99. Tudo isto sem autorização da ONU, mas
também sem grandes protestos por causa disso, estranhamente. Entretanto,
no Ruanda, ocorria mais um desastre operacional das Nações Unidas, que
desta vez contou também com a negligência americana e a cumplicidade dos
franceses – o massacre dos tutsis pelos hutu resultou em 500.000
mortos, pelo menos.
Sobre as recentes guerras no Iraque e no Afeganistão o autor
manifesta uma opinião não convencional. Seguindo a doutrina que
recomenda o ataque a países que albergam organizações terroristas, já
que o terrorismo é difícil de combater de outra forma por forças
convencionais, a administração Bush consegui o apoio da ONU para a acção
militar no Afeganistão, muito porque foi rapidamente colocado um
governo nativo no poder. No caso do Iraque, Niall Fergusson mostra algum
espanto pelo facto deste país não ter sido invadido antes de 2005,
dadas as constantes infracções à lei internacional cometidas pelo
governo de Saddam Hussein, que levaram a 22 resoluções do Conselho de
Segurança (!). E assinala o cinismo da posição francesa, que é uma
constante da sua relação com os Estados Unidos, enquanto desvaloriza a
importância dos interesses do complexo industrial e militar na tomada de
decisão de invadir o país (a cadeia de retalho Wall Mart subiu mais na
bolsa do que a Halliburton durante os anos da guerra).
O autor gosta de chamar islamo-bolchevistas aos radicais islâmicos. É
preciso dizer que esta nomenclatura não é completamente correcta. Se
podemos enquadrar nesse imaginário, com um esforço de boa vontade, o
regime dos Ayatollas, no Irão, a nomenclatura só muito dificilmente é
apropriada para qualificar a Alquaeda ou o ISIS no mesmo enquadramento
ideológico. Mais abrangente e menos polémica será, porventura a
definição Islamo-fascistas usada por outros eminentes analistas da
realidade política no Médio Oriente (2).
A queda.
Niall Fergusson pergunta-se, com algum desassombro e por várias vezes nesta obra: não será melhor para certos estados ditatoriais ou fracassados uma ocupação que permita a transição para a democracia sob protectorado, mesmo que esta ocupação dure décadas? Parece evidente que esta solução é preferível na maior parte dos casos, até porque a descolonização descomprometida com os destinos regimentais dos países colonizados, como foi feita pelas potências ocidentais, não trouxe paz nem prosperidade a esses países. Ao contrário, as ditaduras que se seguiram foram, na perspectiva das populações nativas, bem piores que os impérios coloniais. Na maior parte dos casos, as ex-colónias ficaram mais pobres relativamente às metrópoles. E a globalização não é desculpa: para o autor, o problema da globalização não é o de exisitir. É o de ser pouco ambiciosa.
Por outro lado, as variáveis ambientais, geográficas ou de
salubridade não justificam, na opinião de de Fergusson, o
subdesenvolvimento das ex-colónias, como defendem vários e eminentes
autores contemporâneos como o Professor Jared Diamond (3). O problema
está na ausência de instituições democráticas e liberais, que assegurem
os direitos da propriedade privada, as liberdades individuais, os
direitos contratuais, a estabilidade governativa, a governação honesta,
moderada e eficiente; uma opinião que tem vindo a ser secundada
posteriormente por outros reputados académicos como Daron Acemoglu e
James A. Robinson (4). É, assim, por omissão de civilização e não por
excesso que pecam os impérios.
Seguindo a lógica desta linha de pensamento, não devemos criticar os
americanos por intervirem em territórios além das suas fronteiras, mas
por não estarem dispostos a prolongar a sua estadia por períodos mais
longos, de forma a criar condições reais que alicercem o curso de
democracias de inspiração ocidental.
Os britânicos ficaram 40 anos no Iraque, que é um estado inventado
por eles. E quando permitiram a independência (controlada) e coroaram o
rei Faisal, o hino que tocou na cerimónia oficial foi o “God Save the
King”. É claro que a lógica de Fergusson tens as suas lacunas: mesmo
permanecendo 40 anos no Iraque, o Império Britânico acabou por não criar
um estado estável, como sabemos hoje muito bem.
E, de qualquer forma, percebe-se que os americanos prefiram residir
no seu país e avaliar com cepticismo o colonialismo à maneira europeia. A
nação federal oferece um nível de conforto material e civilizacional
aos seus cidadãos que não tem comparação com o que era assegurado pela
Inglaterra do século XIX (ou o Portugal dos Séculos XV a XX). Entre
viver em Boston ou viver em Kabul, é compreensível que o americano médio
prefira ficar em casa. Ou voltar para esse farto conforto o mais
depressa que lhe seja possível.
Em oposição directa a escoceses e irlandeses, que usavam o serviço
público colonial do Império Britânico como trampolim sócio-económico, os
cidadãos mais discriminados dos Estados Unidos da América tendem,
apesar de tudo, a querer permanecer nos Estados Unidos da América e,
assim, os EUA lutam com uma escassez crónica de mão-de-obra para o
“nation-building” que é necessário à boa gestão de um império (mesmo que
apenas económico, mesmo que apenas cultural). Actualmente (leia-se:
números de 2004), cerca de 3,8 milhões de americanos vivem no
estrangeiro. Um oitavo do número de estrangeiros que vivem nos EUA.
Destes americanos emigrantes, um milhão vive no México e 687 mil no
Canadá. E dos 290 mil que vivem no Médio Oriente, dois terços residem em
Israel. Há apenas 37 mil americanos a viver em África. A América é “um império sem colonos“.
E como as faculdades americanas não têm vocação ideológica e técnica
para a formação de quadros que operem além-fronteiras, é também “um império sem administradores“.
Além do mais, o apoio popular a aventuras além mares com duração
temporal substantiva é cada vez mais escasso. Se no Vietname foram
precisos 30.000 mortos e anos de combate acesso para que a opinião
pública retirasse o seu apoio ao esforço de guerra, no Iraque bastaram 6
meses de confronto para que a administração Bush se visse a braços com a
contestação geral. Isto embora a análise histórica demonstre o acerto
de uma estratégia mais consistente. A presença militar na Alemanha, no
Japão e na Coreia do Sul, porque foi de longa duração (décadas), gerou a
formação de estados bem-sucedidos.
Por outro lado, e paradoxalmente, a hegemonia americana não parece
ameaçada, como nos tempos da Guerra Fria, por nenhum inimigo cujo
poderio bélico ou económico tenha que ser levado em conta. No
entendimento do autor, a União Europeia é o único rival à altura. A
demografia é superior em mais do dobro (450 milhões de europeus para 200
milhões de Americanos) e o PIB é ligeiramente superior (mais uma vez,
em números de 2004). A economia da União apresenta bons índices de
produtividade, a aproximarem-se da americana, e um peso comercial que é
par, mas não está tão endividada. Porém, e mesmo que se trate de um
aliado céptico e, muitas vezes, cínico, a União Europeia não tem impulso
imperial, nem coordenação militar, preferindo contar, nessa área, com o
protagonismo americano, mesmo que depois se prontifique a criticá-lo
abertamente.
Acresce que a União Europeia tem vários handicaps: a população
envelhecida, um crescimento económico decepcionante, um mercado de
trabalho pouco flexível, com altas taxas de desemprego e baixo
voluntarismo. Os trabalhadores americanos folgam menos, fazem menos
greves e têm um terço dos dias de férias em relação aos trabalhadores
europeus. As políticas comunitárias, que tendem ao proteccionismo
sectorial, e a união monetária, que demonstra grandes fragilidades (o
autor antecipa a crise do euro com extrema acuidade), são também
factores que reduzem a capacidade dos europeus de competirem
efectivamente com os Estados Unidos.
A China – candidata a primeira potência mundial em 2041 (e de
primeira potência de facto até 1850) apresenta altas taxas de
crescimento económico. Mas também sérios problemas de crescimento e de
interdependência comercial. E não está, ou não estava em 2004, em
condições de competir tecnológica e militarmente com os Estados Unidos.
Assim, o declínio e queda do império americano será devido,
fundamentalmente, a duas circunstâncias internas: por um lado, o ruído
de fundo psico-social que está na génese da nação e é anti-imperialista,
tem por consequência uma constante ausência de voluntarismo para a
acção externa. Por outro, a dimensão da dívida pública e a consequente
permanência de um estado de crise orçamental – curiosamente, não por
causa dos gastos militares, que têm descido em relação ao PIB,
consistentemente, desde os anos 50.
O produto americano subiu de 10% do produto mundial em 1980 para 31%
em 2002 e a economia americana é duas vezes e meia maior que a japonesa,
oito vezes e meia maior que a chinesa e trinta vezes maior que a russa
(à data da redacção da obra). Os gastos militares dos EUA excedem o
conjunto dos orçamentos de defesa da União Europeia, da China e da
Rússia.
Os custos da invasão do Iraque e do Afeganistão, ao contrário do que é
muitas vezes propagado, foram marginais face ao PIB. Mas o peso do
consumo público e privado, bem como com a segurança social, está a
transformar a América numa nação vulnerável.
Conclusão
Manifesta-se no Século XXI americano a mesma má equação que aflige a Europa desde as últimas décadas do Século XX: a relação deficitária entre a demografia e capacidade do estado em manter as prestações sociais. A médio prazo os EUA podem ter que escolher entre pagar a dívida soberana ou as pensões. O professor de Harvard traça aliás um quadro muito negro do futuro financeiro e tributário dos EUA: mesmo que os impostos sobre o rendimento fossem aumentados para o dobro e em tempo real, a sustentabilidade do sistema a médio-longo prazo não estaria ainda assim garantida.
O recurso à tradicional e muito questionável solução de emitir mais
moeda já não é nada atraente, porque o correspondente aumento da
inflacção levaria inevitavelmente à subida das taxas de juro dos títulos
do tesouro e da dívida. Ora, os mais significativos detentores da
dívida americana são os chineses e os japoneses, o que é, em termos
geo-estratégicos e civilizacionais, talvez um pouco complicado. A
garantia contra a catástrofe está no facto de tanto os credores do
Império do Meio como os da Terra do Sol Nascente não estarem assim tão
interessados na ruína dos EUA como poderia parecer à primeira vista, já
que muito dependem da prosperidade dos mercados de consumo americanos.
Mas esta conjuntura económica pode sempre mudar, claro, e um dumping de
títulos da dívida do primeiro motor económico mundial é algo que pode
absolutamente mudar o universo como o conhecemos.
É que um império rico e forte não é necessariamente um império poderoso. Fergusson enumera 3 deficits
do império americano que contribuem para a redução da sua influência
global: o económico, por causa da dívida, o da força de trabalho, por
causa da inexistência de um corpo de quadros disponível a dedicar-se a
uma carreira além mares; e o deficit de atenção, na medida em
que o povo americano tende a relativizar a importância dos
acontecimentos políticos e militares externos e a colocar-se
instintivamente com políticas de cariz imperialista.
O
império em negação, que atribui recursos insuficientes aos aspectos não
militares das intervenções e que procura transformar os territórios
económicos e políticos dos países colonizados num prazo
irresponsavelmente curto, é também um império de gordos: “o fardo do homem branco desceu-lhe para a cintura“. E atenção. Nem é preciso que o império caia para que se crie uma perigosa “apolaridade” global“,
O futuro, em resumo, poderá revelar-se por algum tempo como apolar, um
mundo em que não haverá sequer uma potência imperial dominante, talvez
como o século IX mas sem o califado abássida”.
Niall Fergusson não é um prosador sobredotado. Mas, se compararmos
este “Colosso” com outras duas obras do autor publicadas em Portugal
(5), esta será talvez o trabalho de leitura mais aprazível e de tom
menos académico, apesar dos problemas já referidos e que derivam do que
aconteceu no mundo nos últimos 12 anos.
O autor pertence com certeza a uma tribo bastante assertiva de
adivinhos. Prevê a crise económica que rebentou em 2007 com espantoso
detalhe, profetiza o percurso da Moeda Única Europeia como se tivesse
entrado numa máquina do tempo para ver a coisa acontecer uns anos mais
tarde e palpita-lhe que o abandono precoce do Iraque poderia descambar
em algo como o Estado Islâmico. Mas também é verdade que a ignorância
sobre factos entretanto ocorridos, como a incapacidade de encontrar as
armas de destruição maciça no Iraque, que era segmento fundamental do
argumento para a invasão, impedem o bom professor de ter no seu leitor
um dedicado apologista. Ainda assim, e considerando o acerto de muitas
das suas previsões, será de levar muito a sério a perspectiva de uma
ruptura do sistema financeiro americano, que o autor anuncia como
incontornável. E uma consequente era de apolaridade que, atendendo
objectivamente às lições da história, não é nada recomendável.
Um dos mais interessantes contributos desta obra é que se trata de um
trabalho de vocação comparativa. O autor explica-nos outros impérios
para nos explicar o americano. E principalmente explica com mestria e
capacidade de síntese o Império Britânico. E é através desse esforço
dialéctico que percebemos as fragilidades de um “império devedor”, uma
excepção volátil às tradições imperiais anteriores, que investiam nos
territórios da sua esfera de influência e eram essencialmente entidades
credoras.
“Colosso – Ascensão e Queda do Império Americano” é um livro
inquietante e provocador, polémico na mesma medida que é lúcido. E que
por isso vive para além dos seus defeitos intrínsecos. E que por isso é
um documento de profundidade inegável. E, a espaços, bastante
assustador.
—
(1) Sapiens – De Animais a Deuses – Yuval Noah Harari – Campo das Letras Editora – 2015
(2) Islamofascism refers to use of the faith of Islam as a cover for totalitarian ideology. W. Schwartz. The Spectator . 2006
(3) Colapso – Ascensão e Queda das Sociedades Humanas – Jared Diamond – Gradiva – 2006
(4) Porque Falham as Nações – Daron Acemoglu e James A. Robinson – Circulo de Leitores – 2012
(5) – História Virtual – Niall Ferguson (Coord.) – Tinta da China – 2006; A Lógica do Dinheiro – Niall Fergusson – Temas e Debates – 2008
(2) Islamofascism refers to use of the faith of Islam as a cover for totalitarian ideology. W. Schwartz. The Spectator . 2006
(3) Colapso – Ascensão e Queda das Sociedades Humanas – Jared Diamond – Gradiva – 2006
(4) Porque Falham as Nações – Daron Acemoglu e James A. Robinson – Circulo de Leitores – 2012
(5) – História Virtual – Niall Ferguson (Coord.) – Tinta da China – 2006; A Lógica do Dinheiro – Niall Fergusson – Temas e Debates – 2008