Allen Ginsberg, estás sentado ao balcão de um bar em New Jersey e eu
estou a beber um dirty martini contigo e a falar-te do destino perdido
dos escritores da América e tu bocejas de um sono antigo, onde pastam
búfalos e washingtons de toda a espécie que fumam as mais estranhas
marcas de tabaco azul. A barba chega-te aos pés e a poesia dá-te pela
cintura e o teu barbeiro tem saudades tuas e tu tens saudades do after
shave das sarjetas de Manhatan e do haxixe de algas de Atlantic City e
do ácido estradista do Kerouak e da porrada dos polícias do Midwest e do
Jazz ciclónico, carnavalesco, psicadélico-parvo de New Orleans. Como se New Orleans fosse alguma coisa de jeito. Não é.
Allen
Ginsberg, estás a apanhar sol nas docas de Boston, que horror - Boston,
e a alucinar como um cavalo no opiário. Montas esse cavalo loucamente, e
estás a cavalgar a rua cor de rosa aqui no Cais do Sodré que dantes era
das putas e que agora é da tua poesia e que devia ter continuado como
rua das putas. As putas funcionam como rimas, pá, e tu que sempre
recusaste as rimas, mas não tanto as putas; devias saber isso melhor que
ninguém e não devias estar aqui comigo, sentado ao balcão de um bar
onde o Cardoso Pires também já bebeu o seu copo a mais e o relógio conta
o tempo ao contrário como se houvesse uma maneira de contar o tempo ao
contrário. Não há.
Allen Ginsberg, fazes-me lembrar o meu
amigo Márcio Candoso, embora na verdade o meu amigo Márcio Candoso seja
muito melhor poeta do que tu, mas tem o problema de não se chamar Allen
Ginsberg e de viver em Algés, que não é um sítio onde vivem poetas decentes. O problema imobiliário, o problema geográfico, o problema
demográfico dos poetas é que são poucos e esparsos e não têm morada
certa e nunca por nunca seriam capazes da enorme corrupção de comprar um
apartamento em Algés. Os grandes poetas sofrem, regra geral, de
insuficiência postal e tu, por exemplo, serias um gajo difícil de
localizar até pelo Ministério das Finanças, que é uma polícia política
que encontra toda a gente.
Allen Ginsberg, impenitente
paneleiro, és potente como a pila de um gajo com dezoito anos, tu és
erecto-veloz como uma bicicleta a descer pela Rua Poço dos Mouros em São
Francisco, tu debitas prosápia como um amplificador Marshall debita as
notas graves e a verdade é que escreveste uma quantidade enorme de
poemas enormes que ninguém de facto consegue compreender, porque tu
nunca escreveste para seres compreendido porque te disseram, talvez a
tua mãe, talvez um teu obscuro professor de liceu, talvez o teu incauto
mestre do curso superior que fingiste que tiraste ou que não tiraste de
todo, não interessa; talvez o teu controlador do partido comunista americano de que
nunca fizeste parte, talvez algum ignorante sem nome, génio sem sombra,
te tenha dito um dia que tinhas alguma, se bem que remota, hipótese de
escreveres num dia, se bem que remoto, um verso decente e tu acreditaste
e deste na fúria de escrever versos remotos para entendimento de
ninguém. A ver se saía alguma coisa que fizesse de ti um imortal. Nunca saiu.
Allen
Ginsberg, mais valia ficares aqui comigo sentado neste bar de Odeceixe,
para sempre, a ver as garças fazerem filhos; mais valia fazeres tu
próprio alguns filhos, mais valia fazer eu três ou quatro ou setenta
filhos. No meio do ruído todo dos teus poemas que ninguém realmente
entende, camarada, o que se aproveita é aquilo que não conseguimos e o
que não conseguimos foi: continuidade.
Allen Ginsberg, a vida só
tem uma ambição: continuar a ser vida. E tu, estúpido, nem isso
percebeste. E se nem inteligência tens para perceber isso, desgraçado,
como é que esperas que todos os outros, que tiveram a inteligência para
ter filhos, percebam a merda intrincada dos teus versos?
Allen
Ginsberg, estás aqui sentado comigo, no bar absurdo de Telheiras, que
até tem duas mesas de snooker e tudo e não consegues mais que umas
estrofes ainda mais absurdas do que é costume, mas estás contente com elas
porque a tua Beat Generation acha que és deus e mesmo que as estrofes
sejam absurdas, fazem parte de um novo-antigo testamento e são sagradas
porque sim. Estás aqui sentado comigo no improvável bar suburbano que
não tem jukebox porque a MTV é à borla e entristeces porque o Kansas
fica do outro lado do oceano e a estrada sessenta e seis ou sessenta e
oito ou lá o que é não te leva para além da Amadora. Sem o faróeste não
tens veia para os teus indecifráveis poemas de drogadinho. Sem a tua
América de boleias e charros, sem os teus horizontes hollywodescos de estradas poeirentas e mezcal estragado, não encontras
inspiração para mais do que teres sono - esse sono antigo onde pastam os
fantasmas de uma civilização que já foi civilização e que os teus
versos ajudaram a trair.
Allen Ginsberg, a verdade é que nem para
companhia de bebedeira tu serves, ò fraude, nem para crepúsculo de Walt
Whitman tu tens queda, ò mito! Tudo o que posso dizer de ti é que és
fisionomicamente parecido com o Francis Ford Capolla e que o teu
apocalipse de agora nunca chegou a acontecer: és um falso profeta e
estás a ressonar.