domingo, abril 09, 2017

Ode a Allen Ginsberg.

Allen Ginsberg, estás sentado ao balcão de um bar em New Jersey e eu estou a beber um dirty martini contigo e a falar-te do destino perdido dos escritores da América e tu bocejas de um sono antigo, onde pastam búfalos e washingtons de toda a espécie que fumam as mais estranhas marcas de tabaco azul. A barba chega-te aos pés e a poesia dá-te pela cintura e o teu barbeiro tem saudades tuas e tu tens saudades do after shave das sarjetas de Manhatan e do haxixe de algas de Atlantic City e do ácido estradista do Kerouak e da porrada dos polícias do Midwest e do Jazz ciclónico, carnavalesco, psicadélico-parvo de New Orleans. Como se New Orleans fosse alguma coisa de jeito. Não é.
Allen Ginsberg, estás a apanhar sol nas docas de Boston, que horror - Boston, e a alucinar como um cavalo no opiário. Montas esse cavalo loucamente, e estás a cavalgar a rua cor de rosa aqui no Cais do Sodré que dantes era das putas e que agora é da tua poesia e que devia ter continuado como rua das putas. As putas funcionam como rimas, pá, e tu que sempre recusaste as rimas, mas não tanto as putas; devias saber isso melhor que ninguém e não devias estar aqui comigo, sentado ao balcão de um bar onde o Cardoso Pires também já bebeu o seu copo a mais e o relógio conta o tempo ao contrário como se houvesse uma maneira de contar o tempo ao contrário. Não há.
Allen Ginsberg, fazes-me lembrar o meu amigo Márcio Candoso, embora na verdade o meu amigo Márcio Candoso seja muito melhor poeta do que tu, mas tem o problema de não se chamar Allen Ginsberg e de viver em Algés, que não é um sítio onde vivem poetas decentes. O problema imobiliário, o problema geográfico, o problema demográfico dos poetas é que são poucos e esparsos e não têm morada certa e nunca por nunca seriam capazes da enorme corrupção de comprar um apartamento em Algés. Os grandes poetas sofrem, regra geral, de insuficiência postal e tu, por exemplo, serias um gajo difícil de localizar até pelo Ministério das Finanças, que é uma polícia política que encontra toda a gente.
Allen Ginsberg, impenitente paneleiro, és potente como a pila de um gajo com dezoito anos, tu és erecto-veloz como uma bicicleta a descer pela Rua Poço dos Mouros em São Francisco, tu debitas prosápia como um amplificador Marshall debita as notas graves e a verdade é que escreveste uma quantidade enorme de poemas enormes que ninguém de facto consegue compreender, porque tu nunca escreveste para seres compreendido porque te disseram, talvez a tua mãe, talvez um teu obscuro professor de liceu, talvez o teu incauto mestre do curso superior que fingiste que tiraste ou que não tiraste de todo, não interessa; talvez o teu controlador do partido comunista americano de que nunca fizeste parte, talvez algum ignorante sem nome, génio sem sombra, te tenha dito um dia que tinhas alguma, se bem que remota, hipótese de escreveres num dia, se bem que remoto, um verso decente e tu acreditaste e deste na fúria de escrever versos remotos para entendimento de ninguém. A ver se saía alguma coisa que fizesse de ti um imortal. Nunca saiu.
Allen Ginsberg, mais valia ficares aqui comigo sentado neste bar de Odeceixe, para sempre, a ver as garças fazerem filhos; mais valia fazeres tu próprio alguns filhos, mais valia fazer eu três ou quatro ou setenta filhos. No meio do ruído todo dos teus poemas que ninguém realmente entende, camarada, o que se aproveita é aquilo que não conseguimos e o que não conseguimos foi: continuidade.
Allen Ginsberg, a vida só tem uma ambição: continuar a ser vida. E tu, estúpido, nem isso percebeste. E se nem inteligência tens para perceber isso, desgraçado, como é que esperas que todos os outros, que tiveram a inteligência para ter filhos, percebam a merda intrincada dos teus versos?
Allen Ginsberg, estás aqui sentado comigo, no bar absurdo de Telheiras, que até tem duas mesas de snooker e tudo e não consegues mais que umas estrofes ainda mais absurdas do que é costume, mas estás contente com elas porque a tua Beat Generation acha que és deus e mesmo que as estrofes sejam absurdas, fazem parte de um novo-antigo testamento e são sagradas porque sim. Estás aqui sentado comigo no improvável bar suburbano que não tem jukebox porque a MTV é à borla e entristeces porque o Kansas fica do outro lado do oceano e a estrada sessenta e seis ou sessenta e oito ou lá o que é não te leva para além da Amadora. Sem o faróeste não tens veia para os teus indecifráveis poemas de drogadinho. Sem a tua América de boleias e charros, sem os teus horizontes hollywodescos de estradas poeirentas e mezcal estragado, não encontras inspiração para mais do que teres sono - esse sono antigo onde pastam os fantasmas de uma civilização que já foi civilização e que os teus versos ajudaram a trair.
Allen Ginsberg, a verdade é que nem para companhia de bebedeira tu serves, ò fraude, nem para crepúsculo de Walt Whitman tu tens queda, ò mito! Tudo o que posso dizer de ti é que és fisionomicamente parecido com o Francis Ford Capolla e que o teu apocalipse de agora nunca chegou a acontecer: és um falso profeta e estás a ressonar.