sexta-feira, novembro 16, 2018

Jordan Peterson ao vivo ou a teatralidade da filosofia contemporânea.


Jordan B. Peterson, a estrela rock do panorama filosófico actual, esteve ontem a fazer aquilo que mais gosta - falar pelos cotovelos - na Nova School of Business & Economics, em Carcavelos. Com alguma sorte, consegui um bilhete e fui lá ouvir o homem e o homem, tanto como o evento, bem merecem umas linhas aqui no blog.

A primeira sensação que me fez cair o queixo, logo que cheguei, foi a criada pela magnificência arquitectónica desta escola, de cuja simples existência era desconhecedor. A Nova School of Business & Economics é uma espécie de campus paradisíaco, estendido junto ao mar sobre um perímetro imenso, com amplas estruturas exteriores e interiores. Deve ser mesmo fantástico estudar aqui, isso é certo. Num post futuro hei-de deixar algumas fotos que tirei da estrutura, que não deve ter paralelo em Portugal.


Os organizadores do evento (a faculdade e a editora do livro de Peterson em Portugal - a Lua de Papel) não acreditaram, nitidamente, que o psicólogo canadiano tivesse a popularidade em Portugal que tem no resto do universo ocidental e reservaram para o efeito um pequeno auditório. Rapidamente se aperceberam que estavam equivocados e a massiva procura de bilhetes obrigou-os a utilizar o main hall da escola, que é um espaço lindíssimo e consideravelmente amplo. Estava, claro, repleto. Tanto o reitor Daniel Traça, como o presidente do conselho científico da Nova SBE, Miguel Pina e Cunha, como o meu amigo de faculdade José Pratas, que representava a editora, manifestaram nas suas sucintas alocuções introdutórias algum espanto por tanta gente estar interessada em ouvir, durante duas horas, não um futebolista, não um político, não uma estrela de rock, não um socialite, mas um filósofo extremamente tagarela, que discursa sobre assuntos tão densos como o comportamento social das lagostas ou a natureza do bem e do mal na psiquiatria de Carl Jung. Miguel Pina Moura fez notar que a lotação atingiria ainda assim o seu limite mesmo que existissem o dobro dos lugares (eu calculo por alto que estavam cerca de 800 pessoas ontem na Nova SBE).


Acontece que Jordan B. Peterson é popular precisamente por ser denso. Precisamente por conseguir discorrer, com fluência e brilhantismo e sem qualquer cábula, duas e três horas seguidas sobre assuntos complexos e intrincáveis, que ele transforma em mensagens inteligíveis, coerentes entre si e extremamente poderosas junto dos muitos milhões de pessoas que estão cansadas das "verdades" vazias, simplórias e ideologicamente carregadas dos media convencionais. Falando sobretudo contra o vácuo moral do pós-modernismo e a falsa e inócua promessa da felicidade sem sacrifício, da igualdade sem responsabilidade e da ideologia sem ciência, a cruzada do autor canadiano trava-se pelo regresso dos valores fundamentais do Ocidente e pela importância de encontrar significado para a existência.
Imperativos categóricos típicos de Peterson, como aquele que aconselha as pessoas a levantarem a cabeça e endireitarem as costas ou a arrumarem o seu quarto antes de protestarem com a sociedade, podem parecer, à partida, primários, mas ressoam no imaginário de milhões de pessoas, principalmente dos jovens, como uma bomba atómica de razão pura.



12 Rules For Life já foi traduzido em mais de 40 línguas, tendo chegado a número um de vendas na Austrália, no Brasil, no Canadá, nos Estados Unidos, na Holanda, no Reino Unido, na Nova Zelândia e na Suécia.
Até o New York Times, ao mesmo tempo que omite escandalosamente a obra na sua famosa lista de livros mais vendidos, é obrigado a considerar que este é "o mais influente pensador do mundo ocidental".
O canal de Peterson no Youtube soma mais de 150 milhões de visualizações e 1,3 milhões de subscritores. A sua conta de Twiter tem "apenas" 300 mil seguidores. Através da Patreon, uma start-up online que angaria fundos para uma diversidade enorme de projectos, Peterson garante que 9500 admiradores financiem a sua frenética actividade com cerca de um milhão de dólares por ano.

Não admira, por isso, que também em Portugal o autor seja admirado e seguido por milhares de pessoas. Apesar de não ter praticamente nenhuma presença nos canais mediáticos convencionais (com excepção do Observador, que tem mais recentemente tentado seguir o fenómeno e que ainda hoje publica uma entrevista com ele).


Devo fazer notar que o evento de ontem decorreu sem perturbações nem aparato de forças de segurança, o que é muito raro na vida pública de Jordan Peterson. Em sua grande parte, as palestras de professor da Universidade de Toronto são acompanhas por um insuportável ruído de fundo: radicais de esquerda manifestam-se frequentemente à entrada e no interior dos recintos, interrompendo as palestras ou vandalizando as áreas circundantes ou criando mil maneiras de ensurdecer as pessoas que querem ouvir o que o canadiano tem para dizer. Ainda recentemente, na civilizadíssima Queens University, Peterson viu-se obrigado a articular o seu pensamento ao som de impropérios vindos do exterior e murros nas janelas da venerável sala da reitoria.



Muitas vezes, o bom do professor tem que ser escoltado pela polícia do hotel para a sala da conferência e vice versa. Acusado de ser nazi, fascista, machista, racista e retrógrado; vilipendiado e agredido de todas as maneiras e feitios pelas turbas de controlo ideológico na rua e nos estúdios das televisões e nas redacções dos jornais e nos fóruns das universidades, Peterson insiste, ironicamente, numa mensagem literalmente platónica que é tudo menos belicista: trata-te como tratas as pessoas que mais amas. Depois de conseguires isso, trata toda a gente como te tratas a ti.

No que diz respeito à palestra propriamente dita, Jordan transcendeu um pouco o propósito teórico, que seria o de falar sobre o seu best-seller, integrando o aparelho axiomático desse livro com um outro que publicou em 1999, "Maps of Meaning", e que marcou profundamente a psicologia das religiões, embora o seu impacto tenha incidido sobretudo no plano científico. Convém registar que antes do triunfo mediático, Peterson já tinha triunfado na vertente académica, com centenas, sim centenas, de papers publicados nas mais prestigiadas revistas académicas do mundo.


Com a sua habitual perícia oratória, acrescida de um teatral e eloquente uso da gestualidade, Jordan discorreu durante hora e meia sobre a ideia de que a geografia da realidade é na verdade uma geografia conceptual, na medida em que depende da percepção, da interpretação e da motricidade humanas. Esta geografia conceptual está, por razões de selecção darwiniana, biológica e neurologicamente dividida entre a ordem e o caos. O fundamento estrutural da existência é assim parametrizado dialecticamente entre o bem e o mal e é ao indivíduo e à sua capacidade moral que cabe a responsabilidade de manter a dicotomia em equilíbrio. É precisamente quando os indivíduos esquecem essa responsabilidade que acontecem os holocaustos, as grandes guerras, os genocídios, as trágicas desgraças da terrível história da humanidade. É quando esquecemos valores que são maiores que nós próprios, que conhecemos o inferno.


Por antítese, o apogeu moral, filosófico e industrial da civilização ocidental  - indiscutivelmente o mais bem sucedido modelo de governação dos povos na história - aconteceu precisamente porque inumerável gente, durante centenas de gerações, foi trabalhando incansavelmente e sacrificando os seus destinos em nome de valores sólidos e positivos como o direito constitucional e a protecção do indivíduo contra o estado, a liberdade, a tolerância, a segurança, o conforto material, a funcionalidade e estabilidade de governos e economias, a capacidade de sonhar e de materializar os sonhos que é uma promessa de progresso.


O produto histórico é assim, na filosofia de Peterson, o resultado épico da luta contra o mal. Contra o caos que é inevitável (mais inevitável do que a ordem), mas que tem sido equilibrado pelo paradigma da tradição judaico-cristã. Ao aniquilarmos, como temos feito no século XXI, os valores dessa tradição, estamos a colocar em perigo um equilíbrio periclitante. Porque Peterson concorda com Calvin: há monstros debaixo da cama. Há predadores na escuridão. Convém que cada um de nós faça o que for possível para que esses monstros permaneçam em repouso nas trevas, esse perímetro determinado pela civilização. Caso contrário, um apocalipse não é apenas possível. É bastante provável.



























No fim, como já tinha acontecido na sua chegada ao palco, a audiência aplaudiu de pé numa aclamação que diz mais sobre o trajecto, a mensagem e o perfil do homem do que sobre a particularidade do evento. Jordan Peterson é uma estrela. Se calhar, a única no firmamento da filosofia deste século. E isto não é dizer pouco.