quarta-feira, dezembro 19, 2018

Postal de Natal #03


Do Dilúvio à Torre de Babel, de Sodoma a Gomorra, o Antigo Testamento insiste num princípio básico: dado o holocausto, a culpa é tua. É a tua exclusiva degenerescência moral que conduz à degenerescência moral - e funcional - da sociedade. Por isso, não adianta protestares com as injustiças do mundo enquanto não acabares completamente com a mais remota hipótese de seres injusto. Não adianta assinalares a vilania dos outros enquanto procuras justificar a tua própria. Em vez de te queixares da tua sorte, age eticamente de forma a erradicar a aleatoridade da tua vida. Na medida em que é pelos teus actos e pelas tuas palavras que serás julgado, comporta-te com os outros como gostarias que os outros se comportassem contigo e usa o dom do discurso com sabedoria e sensatez. Esse é o melhor método para manter os monstros no seu devido perímetro de trevas.Esse é o único processo que contribui com eficácia para que na tua cidade consigas, ao contrário de Abraão em Gomorra, encontrar  um punhado de justos homens. Porque o apocalipse é isso mesmo: a ausência de homens justos.

Os Dez Mandamentos constituem um elogio ao bom senso de tal forma eloquente que ainda hoje algumas das principais leis morais e jurídicas permanecem fundadas nestes breves versículos do Êxodo. Por isso, sempre que um pacifista secular atira contra a convicção cristã o célebre Quinto Mandamento, está nitidamente armado em parvo porque no hebraico original o acto que se interdita é o assassinato. Num texto que respira sabedoria como este, não faria sentido obstar à legítima defesa ou à utilidade civilizacional da guerra (sendo certo que os soldados não se assassinam uns aos outros). Mais a mais, Deus tem outras prioridades: antes deste imperativo, que surge apenas no 13º versículo, já tinha proíbido o culto de outros deuses, a arte sacra, a vã invocação do seu nome, o trabalho ao sábado e a má educação dos adolescentes. Afinal, há mais coisas no céu e na terra do que sonha a literatura policial.