sexta-feira, fevereiro 07, 2020

Um perigoso exercício de pretensão.

Não costumo meter-me com outras páginas de Facebook, porque o Facebook já é explosivo o suficiente e as coisas que de vez em quando lá - e aqui - escrevo já são bombásticas quanto baste. Mas o meu querido amigo Márcio Candoso, que é um realizado facebooker, inspirado poeta, colaborador intermitente do Blogville e uma pessoa de inteligência e talento, teve a infeliz ideia de postar uma frase que deu comigo em doido, de tal forma pretensiosa, de tal forma perigosa ela é. A frase foi esta: "A democracia é demasiado importante para que fique ao critério das pessoas".

Para além do óbvio facto de que a democracia que não depende do critério das pessoas (leia-se, totalidade dos cidadãos de uma dada nação) não é democracia, é oligarquia, acresce imensamente ao meu imenso incómodo a extrema presunção da frase. O Marcio Candoso acha que há muita gente que não devia participar da vida democrática, enquanto estipula implicitamente, que ele, e um punhado de bem pensantes como ele, é que deviam completamente estabelecer o democrático critério. A palavra democracia passa assim, no pensamento do meu amigo Márcio Candoso, a ter a conotação que tinha, por exemplo, na extinta e vencida e draconiana e soviética República Democrática Alemã. E o velho Adolfo também pensava um bocado desta perigosa forma e foi por isso que mandou incendiar o Reichstag.

É claro que o Márcio Candoso não tem uma maneira objectiva de saber que pessoas ilustres são dignas de aceder ao voto e que pessoas insignificantes é que não têm. Nem está interessado nisso, obviamente, porque é manifesto que o critério dele vai ser o ideológico: quem concorda com as ideias do Márcio Candoso sobre o que deve ser uma república no Ocidente, acede à mecânica democrática, quem não concorda, não acede. E as ideias dele, bolorentas e caducas e tecnicamente falidas sobre o que deve ser uma república no Ocidente, consubstanciam-se nisto: uma imensa monarquia Sueca, anacronicamente localizada nas duas ou três décadas do pós-guerra.
Por amor de Deus.

A verdade é que o Márcio acha que quem não concorda com ele é imbecil ou imoral. Por exemplo, em 2016, Trump foi eleito com 63 milhões de votos. Esta gente toda é, sem excepção, no visionário e discutível programa humanista do Márcio, ou imbecil ou imoral (o Márcio ignora que um terço destes destituídos barra canalhas também tinham votado no Obama, mas a vida - e a ciência estatísitica - é assim irónica).

Outro exemplo: os 14 milhões de ingleses que deram uma eloquente e massiva vitória a Boris Johnson nas legislativas de Dezembro último, deviam todos ser afastados das urnas, por demência ou banditismo ideológico. Também aqui, o Márcio parece esquecer que uns bons 4 milhões destes desgraçados passaram a vida a votar no Labour, partido com que ele simpatiza mais e cujos eleitores considera de certeza pessoas dignas da sua democracia. O problema é que os eleitores têm esta péssima mania de alterar o sentido do seu voto, ou seja, de passarem de pessoas inteligentes e morais a abjectos subptodutos regimentais que deviam ser internados rapidamente. Principalmente quando mudam de opinião no sentido inverso ao que o Márcio acha decente e intelectualmente válido e isso tudo.

O meu amigo está clamorosamente errado. E está clamorosamente do lado errado da história. E este simples facto demonstra o erro: a crónica eleitoral da Terceira República Portuguesa resume-se ao facto de muito pouca gente inteligente votar estupidamente e de muita gente estúpida votar com grande inteligência. É essa aliás uma das mais notáveis virtudes das democracias ocidentais: a de instituir uma inteligência colectiva - a do bom senso - que transcende largamente a capacidade intelectual de cada indivíduo.