terça-feira, outubro 13, 2020

Epitáfio

A minha vida são dois dias:
fui parido a tantos do tal,
serei enterrado no prazo normal.
Vivi a mais sinóptica das biografias,
história sem memória e voz sem audiência.
Nunca exerci poder ou trafiquei influência
e já dentro da idade foi a mediocridade
que me conservou a inocência.

Não fiz filhos por cautela
e evitei sarilhos como a febre amarela;
não sofri torturas nem conjurei vilanias.
A minha vida são dois dias
mas com uma noite apenas:
aquela em que cai cansado, enrolado enfim
no colchão das penas
que tenho de mim.

A minha vida são dois dias:
aquele em que fui nado,
aquele em que serei terminado.
Não provei doce glória ou exagerei alegrias
e às tragédias fui poupado.
Amei esporadicamente e esporadicamente fui amado;
dança de um só passo que no silêncio deste espaço
não há tango nem fado.

Deixo a mais sintética das biografias:
não fui senhor, não fui criado,
nasci em Portugal e em Portugal serei sepultado.
A minha vida são dois dias
de horas céleres e vazias;
nunca me aconteceu nada de especial,
foi discreto o meu astral
e morrerei de um qualquer mal.

A minha vida são dois dias
mas com uma noite apenas:
aquela em que adormeci ferido
na mais doce das arenas
e sonhei romano com o ser humano
que podia ter sido.