Apesar de vivermos sem dúvida na era mais pacífica da história universal do ódio, apesar de residirmos num dos países mais seguros da Europa e da Europa ser o continente mais seguro do mundo, as pessoas vivem embrulhadas em várias e profundas e complexas camadas de medo.
As pessoas têm, por exemplo, medo do sol. Quando chega o verão, escondem-se na sombra e chegam à praia às seis da tarde com largos chapéus metafóricos e abundantes pomadas psico-protectoras para evitarem o cancro da pele e doenças várias e imaginárias sem perceberem que a exposição solar é imprescindível à boa condição clínica da humanidade, que não bomba nada sem vitamina D, um nutriente fundamental para toda a vida mamífera (sim, meus queridos, o sol alimenta).
As pessoas têm, por outro exemplo, medo de morrer. Têm um completo e delirante medo de morrer, que vai aumentando concomitantemente com a idade, o que faz absolutamente sentido nenhum: se é verdade que a experiência conta - e de que maneira - essa virtude só nos ensina a certeza de que se há alguma realmente importante coisa que precisamos de fazer como seres vivos é ter filhos e saber morrer, calmamente, mais tarde ou mais cedo, depois disso.
As pessoas têm medo de ferir sensibilidades e as pessoas têm medo de palavras e as pessoas têm medo da velocidade e as pessoas têm medo de ir aqui e ali por causa disto ou por causa daquilo. As pessoas têm medo de serem ofendidas ou agredidas (para as pessoas é mais ou menos a mesma coisa) e têm medo simétrico de ofender com balas e agredir com substantivos. As pessoas têm medo de beber um copo a mais, têm medo do bife, têm medo do leite, têm medo das galinhas como das sardinhas; têm medo do boletim meteorológico e têm medo de vários apocalipses; apocalipses climáticos, patológicos, sobrenaturais com invasões de extraterrestres ou naturais com impactos meteóricos. Não interessa a fantasia, porque o medo é sempre real: localiza-se na jugular das pessoas e as pessoas não conseguem viver sem jugular e quem tem jugular tem medo. Além disso, todos sabemos ou devemos saber que o medo, em dose sensata, é um instrumento de sobrevivência e até, aqui entre nós, de civilização. Todos sabemos ou devemos saber, que é o medo que faz os heróis. E que dá corpo às grandes rábulas da história e da literatura. E que dá sentido à glória. E que é motor da paz, na maior parte dos casos.
Mais ainda assim, caramba, há um momento em que o medo já não é medo. É cobardia pura e dura.