sexta-feira, abril 23, 2021

Ensaio sobre a cegueira: uma carta aberta.

Redigida e enviada por email depois de uma noite de conversa animada com duas alminhas que muito estimo mas que caíram substancialmente na minha consideração, no decurso da polémica. Retirei os substantivos próprios porque ainda conservo alguma decência, embora já não em quantidades generosas. Cada vez conheço menos pessoas que mereçam ser tratadas com decência em quantidades generosas.

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Viva.

Desculpem, mas não consigo parar de pensar na vossa preocupação sobre o eventual, projectado e vago fascismo do André Ventura, quando vivem, aqui e agora, em pura e dura ditadura. Ditadura que Salazar, por exemplo, nunca imaginou possível.

A ironia dá-me lágrimas e gargalhadas.

Os meus amigos estão a ser sujeitos a um totalitário mandato de tudo, que vos nega a liberdade de movimentos, de livre iniciativa, de livre expressão, de livre reunião, de livre arbítrio a todos os níveis do arbítrio. E ficam chocados porque o diabo do Ventura quer esterilizar os violadores?

Os meus amigos são censurados nas redes sociais, sacrificados no altar ideológico do serviço nacional de saúde, roubados pelo fisco, aviltados pelas elites, enganados pela imprensa, regulados por burocratas de Bruxelas que vocês não elegeram, reféns de banqueiros alemães que vos desprezam, gozados pelo aparelho judicial, fodidos pela polícia como se fossem criminosos, levados à condição de mendigos pelos vossos clientes, levados à condição de sopeiras pelas vossas mulheres, levados à condição de escravos pelos vossos filhos, levados à falência das expectativas económicas pela negação de um sistema liberal e meritocrata minimamente saudável e pelo triunfo póstumo e bolorento de um marxismo que nunca resultou em lugar qualquer nem em tempo nenhum, e ainda assim condicionados e convencidos a pensar que vivem no melhor dos mundos, quando a civilização cai flagrantemente sobre o sofá da vossa obscena condescendência. E ainda assim, temem que o Chega obrigue os ciganos a pagar impostos (pecado capital!).

Por. Amor. De. Deus.

Nem queiram saber a impressão que me faz constatar que pessoas sensíveis e inteligentes sejam tão evidentemente condicionadas pelos media e pelas verdades oficiais, plastificadas, incongruentes, desastradamente repetidas num exercício amador de propaganda de quarta classe.

Ou se calhar o problema está na minha avaliação do que é uma pessoa sensível e inteligente (estou mais inclinado para este última hipótese, na verdade).

O que os poderes instituídos pretendem é mesmo a conclusão de fim de noite expressa por um de vós: "é melhor não falar de política nem de Covid".

É melhor para quem, ò alminhas?

Bom Jesus. Se o elefante magenta poisado à frente dos vossos olhos consegue passar despercebido, não será altura de uma consulta oftalmológica?

Acordem, caralho.

Ou, caso queiram permanecer adormecidos, evitem a minha companhia acordada, daqui para a frente, porque não vos fica bem o convívio com fascistas do meu género (do género de fascistas que ama a liberdade, quero eu dizer), na medida em que apenas o convívio com os fascistas estabelecidos vos será conveniente. E aprazível.

Há bons e maus fascismos, para os meus amigos. Incomoda-vos o imaginário fascismo do pobre e desapoderado Ventura, mas não o estalinismo militante do PCP ou o niilismo destrutivo do Bloco. Para mim, não há fascismos que não me incomodem. Só há fascismos e são todos um inferno horroroso. E não estou a falar dos fascismos projectados em alguém. Não estou a falar dos fascismos futuros, hipotéticos, com que vos ameaçam no telejornal. Estou a falar dos fascismos de ontem, comprovados, mas com que vocês e a actual República parecem viver muito bem, e os daqui e de agora, que incrivelmente vocês, bem acompanhados pelo restante rebanho de ovelhas míopes e obedientes, parecem aceitar com cordial cobardia e histórica irresponsabilidade.

É claro e certo como as palavras que agora escrevo, que chegará um dia em que, de súbito, serão essas dioptrias curadas pela crueldade do destino e os meus amigos vão ser finalmente capazes de assistir à realidade para além dos reflexos da proverbial caverna de Platão. Mas será demasiado tarde. Demasiado tarde para a conversa e demasiado tarde para qualquer hipótese de redenção. Porque - não quero deixar margem para dúvidas sobre isto - considero de facto que uma boa parte dos vossos pontos de vista (fraca) realizam e consubstanciam o Mal. O mal satânico, o mal absoluto que assola a condição humana desde que Adão deu a dentada na danada da maçã.

No entretanto, desejo-vos boa sorte. Desejo-vos a leitura de dois ou três livros de história (não é pedir muito). E desejo, acima de tudo, que me poupem à vossa tremenda ignorância de tudo, por gentileza.

Obrigado.

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