Há muitas maneiras de tentar aniquilar a democracia. As maneiras antigas têm sido geralmente contrariadas pelo sangue dos povos e pela sabedoria dos fundadores dos regimes ocidentais que, nos séculos XVII e XVII, em Inglaterra, na América e em França, estabeleceram os cânones que iriam funcionar esplendidamente até ao fim do Século XX. As maneiras modernas, infelizmente, nunca foram sonhadas ou previstas por esses sábios. E os povos ocidentais da actualidade não estão interessados em derramar uma gota que seja do sue plasma vital para defenderem o mais nobre legado da história da humanidade.
Para sermos justos, seria impossível que Cromwell antecipasse o niilismo ideológico da BBC, a decadência de Oxford ou a esquizofrenia de Boris Johnson; que Jefferson conseguisse prever os golpes baixos do actual Supremo Tribunal americano, os truques sujos de Silicon Valley e a vilania da CNN, e que Montesquieu pudesse imaginar que a sua república fosse partilhada com milhões de muçulmanos que subscreveriam uma boa parte dos preceitos regimentais do Ancient Régime.
Ainda assim, para destruir essas ideias constituintes do ideal democrático e humanista do Ocidente, foi preciso fazer batota, porque os legisladores do iluminismo sabiam bem o que estavam a edificar e contra que forças históricas batalhavam. Este post destina-se precisamente a enunciar alguns desses métodos trafulhas, esses preceitos bandidos que levaram à falência, nos últimos 10 a 20 anos, a boa, previdente e duradoura filosofia política desses pais fundadores.
Como há muito para escrever sobre este assunto, o post será dividido em dois ou três segmentos.
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Caso de estudo #01
Jurisprudência da destruição: os vira casacas do Supremo Tribunal Americano.
O Supremo Tribunal Americano é, para todos os efeitos, um tribunal constitucional, com poderes para alterar radicalmente a leitura jurídica do documento fundamental da federação. É por isso de importância transcendente que o colectivo de juízes que o compõem seja ideologicamente equilibrado. Assim sendo e segundo a Constituição, os Juízes são nomeados pelo Presidente e confirmados ou rejeitados pelo Senado, de forma a que exista um constante exercício de compromisso entre os poderes instituídos. Mais a mais, um juiz que seja confirmado para o Supremo fica por lá até que se queira reformar ou que morra, pelo que as oportunidades de nomear novos magistrados não abundam e a hipótese de criar maiorias ideológicas no colectivo são, em teoria, muito reduzidas.
Acontece porém que, nos últimos anos, tem-se registado um fenómeno de ilusionismo que rompe completamente com a lógica constitucional: os juízes nomeados pelos republicanos, por terem um perfil de jurisprudência conservador, chegam ao Supremo e começam a actuar como liberais.
Nos últimos 30 anos, os republicanos colocaram 6 juízes no Supremo. Destes, apenas um, Clarence Thomas (por acaso o primeiro desta sequência de três décadas, confirmado em 1991) tem votado consistentemente como um conservador em áreas tão diversas como o aborto (contra), a posse de armas (a favor), a livre iniciativa económica (a favor), os monopólios (contra), a liberdade de expressão (a favor), o serviço público de saúde (contra) e etc.
Todos os outros, com especial destaque para os 3 juízes que Trump conseguiu confirmar, têm traído da forma mais escandalosa possível as expectativas criadas aquando da sua nomeação, votando quase invariavelmente com os juízes democratas nas questões fundamentais que dividem hoje a América e os americanos. O recente caso do acordão sobre o Obama Care é um exemplo típico desta situação.
Ora, o espírito constitucional que preside á formação do Supremo Tribunal americano não tem obviamente em linha de conta este abstruso comportamento dos magistrados, que manifestam um perfil conservador durante toda a carreira, só para o traírem quando chegam ao seu topo. Assim, é impossível manter a integridade do primeiro órgão judicial da nação. E sem essa integridade, todo o sistema político americano fica seriamente ameaçado.
Para piorar as coisas, os democratas, que neste momento habitam a Casa Branca e dominam as duas câmaras do Congresso, querem aproveitar para colocar mais 4 juízes no Supremo, mesmo sem que nenhum dos que lá está se reforme ou morra. Escusado será dizer que esta iniciativa ("Packing the Court") é completamente inconstitucional, apesar de ser organicamente possível, pelo que a radicalização ideológica do primeiro tribunal americano está hoje completamente no horizonte de possibilidades.
E se isto não é fazer batota, um baralho de cartas com cinco ases é perfeitamente aceitável.
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Caso de estudo #02
Esvaziar a Direita: a traição dos mandatos eleitorais.
Um fenómeno muito parecido com o do primeiro caso de estudo tem acontecido nos últimos dez a vinte anos com os representantes políticos, um pouco por todo o Ocidente. O paradigma que nos está mais próximo é interpretado por Rui Rio que, independentemente do eleitorado do PSD, que é basicamente o mesmo desde 1975, decidiu que o partido que lidera não é um parido de direita. Ora considerando que o CDS não existe e que o Chega, mais tarde ou mais cedo, será ilegalizado, a manobra de Rui Rio, que nunca perguntou aos seus eleitores coisa nenhuma sobre o assunto, deixa a república Portuguesa numa situação de deficit democrático que é absolutamente assustadora. Se só tivermos partidos ideologicamente localizados entre o centro e a extrema esquerda, podemos continuar a afirmar de cara alegre que a Terceira República é uma democracia?
Outro exemplo típico deste caso de estudo é Boris Johnson. Eleito com uma maioria esmagadora constituída por uma inédita aliança de conservadores e trabalhistas, que rejeitaram o radicalismo neo-marxista e woke de Jeremy Corbyn, Boris Johnson alterou o seu perfil político do dia para a noite mal tomou posse como primeiro-ministro, posicionando-se, neste surreal momento, à esquerda de Theresa May, por exemplo, e insistindo numa sacrílega aliança com o establishment britânico contra o qual os ingleses se tinham manifestado veementemente, ao elegê-lo. Com esta desonesta e desleal manobra, apoiada em larga medida pela bancada conservadora no Parlamento, Boris esvaziou em grande medida as hipóteses de, a curto e médio prazo, o eleitorado liberal (centro-esquerda) e conservador ter um candidato que defenda com rigor as suas aspirações. Também em Inglaterra, pelos vistos, teremos que nos perguntar onde fica a democracia, num regime sem intérpretes para a prossecução da vontade popular.
Voltando aos Estados Unidos, é hoje proverbial o ódio que o eleitorado republicano alimenta pelos seus representantes no Capitólio, com excepção de quatro ou cinco ilustres. Mas este desamor é correspondido: é um facto que os congressistas republicanos, escandalosamente comprometidos com os dinheiros dos grandes grupos de interesse, indisfarçavelmente incomodados com as opiniões e os valores dos seus eleitores, convenientemente embrulhados numa bolha de privilégios e devidamente acomodados ao corrupto e elitista ambiente da pantanosa capital, estão tão distantes da realidade dos seus constituintes, são tão indiferentes perante as suas aspirações e necessidades, que até podiam viver em Marte, privados de contacto com os seus círculos eleitorais. E nem sequer escondem alguma hostilidade para com aqueles que os elegeram, como a reacção que tiveram aos acontecimentos de 6 de Janeiro ilustra na perfeição.
Ora, se os cidadãos de direita da federação americana não sentem que os seus valores são representados nas câmaras de Washington, muito antes pelo contrário, a democracia americana só funciona para metade da população.
E se estes três exemplos, entre outros muitos que podia recolher, não constituem jogo sujo, qualquer roleta viciada será de bons costumes.
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Caso de estudo #03
Capitalismo Ideológico: a economia de consumo como manifesto comunista.
Se há 20 anos atrás alguém tivesse previsto que o capitalismo ocidental ia derivar para um sistema ideológico de modelo soviético, esse alguém seria rapidamente internado num ninho de cucos de alta segurança.
O capitalismo sempre foi ideológico, no sentido em que resultava de uma perspectiva liberal da sociedade, que incentivava a criação de riqueza, a livre iniciativa, o acesso meritocrata à prosperidade e o direito à ascensão social. Mas nunca, em 500 ou 600 anos de operação, misturou a política com a mercadoria. John Ford podia votar republicano, mas estava completamente disposto a vender modelos T aos democratas. E não lhe passava pela cabeça amaldiçoar os seus clientes pelas suas opiniões políticas ou inserir propaganda ideológica na comunicação da companhia, ou censurar a imprensa com a qual discordava.
A democracia funcionou muito bem assim, no contexto de mercados liberais e produção apolítica. Mas agora que os grandes conglemorados industriais e informacionais descobriram que os mercados liberais não são favoráveis aos seus projectos de domínio global; agora que o capitalismo adoptou um ideário neo-marxista que promove o conflito identitário, a aniquilação dos pequenos negócios e a extinção da livre iniciativa; agora que as empresas accionadas anonimamente mas dirigidas por bilionários niilistas decidiram intervir de forma a promover o seu nefasto ideário político; agora que os produtos de consumo chegam ao consumidor infestados de conteúdo ideológico; agora que as corporações, em conluio com os estados que as salvam dos seus dispendiosos erros e orgíacos excessos, praticam sabotagem sobre o discurso público,
através da censura pura e dura ou retirando as campanhas publicitárias de programas televisivos ou de
projectos jornalísticos cujo perfil ideológico foge ao cânone soviético
que adoptaram, a democracia corre sérios riscos de se converter numa oligarquia.
Um exemplo característico e deprimente deste estado de coisas, entre tantos outros, é o do muito recente canal televisivo por cabo GB News, a única estação de notícias no Reino Unido de registo conservador (até há dois meses atrás, não existia nenhuma). Apenas com uns dias de emissão, o canal foi logo cancelado pelos grandes grupos económicos, que nem têm problema algum em explicar porquê: não concordam com a sua linha editorial.
Ora, a democracia ocidental só funciona com mercados liberais, separação entre o sector público e privado e livre circulação da informação e da opinião. Quando o poder económico se torna inimigo declarado desses pressupostos está nitidamente a recalibrar, de forma fraudulenta e com intenção manhosa, os dados do jogo civilizacional.
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Caso de Estudo #04
Pandemias e apocalipses climáticos; quando o medo suspende as regras do jogo.
Porque
viviam tempos muito mais violentos, em sociedades diametralmente menos
securitárias e num mundo desprovido de todos, mas todos, os confortos
materiais que temos hoje, os fundadores da democracia ocidental eram
homens habituados à doença, ao sofrimento, à violência, à severidade dos
elementos e às dificuldades, por vezes extremas, da existência. Não
seriam assim e necessariamente capazes de projectar um momento no futuro
em que, a propósito de uma gripe com taxa de mortalidade marginal ou de
um alegado e ligeiro aquecimento da temperatura média do planeta que na
verdade ninguém sente na pele dos dias, fossem retiradas aos cidadãos
liberdades e direitos fundamentais, sem os quais os equilibrados
parâmetros regimentais que estabeleceram e as sociedades livres e
participadas que imaginaram não podem de todo funcionar.
A batota
aqui é a injecção do medo, em quantidades industriais, nas populações que
de qualquer forma são facilmente aterrorizadas porque foram programadas
nas ultimas gerações, errada e criminosamente, para uma vida fácil e
realizada, cumprida em paz e prosperidade, independentemente do
desempenho ontológico de cada um e das circunstâncias imprevisíveis da
História.
Constatando que as medidas de confinamento implementadas pelo governo americano a propósito do Covid-19 foram acolhidas com obediência bovina e resignação aparvalhada por parte dos cidadãos em geral, a administração democrata prepara-se para experimentar um novo sequestro das liberdades individuais com um outro pacote infernal de confinamentos, justificados agora pelas alterações climáticas:
Por outro lado, em Inglaterra, as medidas draconianas tomadas pelo governo de Boris Johnson são historicamente inéditas e chocam frontalmente com o único documento formal que a monarquia parlamentar britânica, consuetudinária em tudo o resto, tem para mostrar ao mundo: a Magna Carta.
Usar o medo, sem substância que o justifique, como
instrumento de obliteração de direitos e liberdades constitucionalmente
garantidas é um golpe baixo.
A não ser que aches legítimo que Myke Tyson
arranque orelhas aos seus adversários.
Parte 3
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Parte 2
Parte 3