De vez em quando vês um filme que altera a ideia que tens da realidade. "The Father", escrito e realizado pelo dramaturgo Florian Zeller, é um desses filmes; um mergulho radical e fractal nas profundidades da demência senil, um subjectivo-objectivo estudo sobre o labirinto de enigmas e olvidos que decorrem no espaço-tempo esquizofrénico da existência de um homem perdido.
Anthony Hopkins, cuja interpretação miraculosa fez da academia de Hollywood um colégio por uma vez respeitável (Best Performance by an Actor in a Leading Role - 2020), cumpre aqui a sua obra ao negro, o seu destino de arlequim do inferno. Doze estrelas em dez possíveis.
O trabalho cenográfico é de mestrado. Se alguma vez foi pertinente dizer que o cenário é um personagem, o apartamento camaleónico - prisão domiciliária e asilo da razão, consultório da esperança e sala de estar no purgatório - onde se desenrola a acção é com certeza um primeiro e absoluto e lapidar exemplo dessa arte de animar a matéria inanimada.
A condução psico-trágica do enredo, num repetitivo e anacrónico jogo de espelhos que se partem e que se tornam inteiros; de circunstâncias que são e não são; de coordenadas que emergem do nada e submergem no perímetro alucinado de um quotidiano sem calendário; de rostos e nomes que surgem e desaparecem, até que essa confusa coreografia das identidades dos outros se revela na volatibilidade da identidade do eu; essa magistral orquestração da intriga que deixa o espectador tão confuso como o condenado que preside ao desenrolar fantasmático da história, é, em The Father, um método novo. Algo que nunca tinha sido experimentado até aqui.
E que nos obriga a uma revisitação arrepiante das epectativas que alimentamos sobre o nosso próprio futuro e como o nosso próprio futuro pode guardar mais mortes do que apenas uma.
Teatral, assustadora, terratransformadora, esta fita é uma rara preciosidade. Um bom motivo para voltar a ver cinema. Para voltar a gostar de cinema.