sábado, março 19, 2022

Com quantos dentes têm #04


A Associated Press, o The Guardian, a BBC, o The Times, o The Independent e O Globo (e estes são apenas os que eu consegui topar) publicaram nas últimas 24 horas um conto de fadas em que os cosmonautas russos da International Space Station envergaram fatos amarelos em apoio dos sofrimentos do povo ucraniano e em protesto contra a invasão russa.

É mentira, claro. Os fatos são costumizados meses antes dos astronautas viajarem para o espaço. E é óbvio para qualquer pessoa sã que a ideia da equipa russa ensaiar um protesto político no espaço é absurda: os astronautas são militares e funcionários públicos e representam oficialmente o seu país; não desejariam por certo voltar à sua pátria como traidores.

A facilidade e a desfaçatez com que esta gente falsifica os factos é desarmante: neste caso bastou uma fotografia de astronautas vestindo fatos amarelos como prova material de uma rábula que é inacreditável logo à partida. Mesmo a propaganda, como foi canonizada no século XX, exige critérios de fabricação da narrativa um pouco mais exigentes e isto não é propaganda. É pior que isso.

A bárbara transformação da realidade a que se dedica, com despudor inusitado, a imprensa mainstream, vai para além de motivações políticas ou das contingências da guerra: objectiva a suspensão da relação que temos com o mundo. Os media estão a ser utilizados para condicionar as pessoas a viverem numa ficção, em que o errado é o certo, o imoral é o moral, a guerra é a paz, a mentira é a verdade e assim sucessivamente até ao colapso psíquico e intelectual dos indivíduos e das sociedades.

Retirar ao Sapiens a hipótese de uma relação fidedigna com o meio concreto e entregá-lo a abstracções ficcionais que invertem o seu aparelho ontológico resultará, em última análise, na edificação de um inferno na Terra.

E é precisamente esse o objectivo.