A maior parte da minha vida foi paga em escudos.
Nessa altura não era preciso ter grandes estudos para um gajo perceber
quando estava a ser roubado,
porque o senso comum fazia parte do mestrado
que tiravas na quarta-classe,
bem tirado.
Por isso, quando estaciono o carro na Avenida da República,
tão cosmopolita como feia
- que é em Lisboa mas podia ser em qualquer esgoto da modernidade europeia -
e tenho que dar duzentos paus por meia hora num lugar
que os meus impostos já tinham pago a sobrar
em 1995, ou coisa que o valha,
fico fodido como se me tivessem rasgado a alma
com uma navalha.
Fico fodido a valer, não tanto por causa dos duzentos escudos
que custam por miúdos os estreitos trinta minutos de estacionamento,
no espaço que à empresa que os rouba custou zero de investimento,
mas por os portugueses aceitarem como um carinho expresso,
serem assim espoliados pelos maneirismos
do progresso.
Fico fodido a valer só de pensar que há, porque os há,
portugueses que são tão bois, mas tão bois,
que calculam cinco à par soma de dois,
para concordar com o preço do asfalto, saudando, com as mãos no ar, o assalto,
sorridentes e agradecidos perante a ousadia
dos bandidos.
Há no português contemporâneo uma vontade de ser espoliado e vacinado,
mal tratado como um tóxico-dependente:
todo um povo que passou a gado
desde que a palha esteja em promoção
no Continente.
Há nesta gente fraca e obtusa e teimosa, na sua estupidez redonda e contagiosa,
um insuperável desejo de humilhação, um incontornável vício de servidão,
um indefectível hábito de deixar cair os joelhos ridículos
no sítio onde já estavam
os testículos.