O primeiro anseio que ocorre a este escriba é que o dia corra sem incidentes e que o homem chegue inteirinho à Casa Branca, o que já será uma vitória da vontade popular, da cidadania e da democracia.
E enquanto na Europa, a maior parte dos partidos populistas sofrem ameaças de serem cancelados, com os oligarcas de Bruxelas propondo até que as eleições sejam anuladas caso os seus resultados sejam significativos, como aconteceu na Roménia, não deixa de ser notável o facto de nos Estados Unidos ser ainda possível eleger um político para o cargo mais alto da nação que, pelo menos em teoria, pretende defender os interesses de quem o elegeu e do país que governa.
Esta é aliás uma boa e simples definição de populismo: a defesa dos interesses dos eleitores e não de agendas que transcendem largamente esses interesses.
Desde que foi eleito, Trump deu ao mundo péssimos sinais, com a nomeação para o seu executivo de répteis do pântano de Washington como Mike Waltz e Marco Rubio e insectos de Wall Street como Scott Bessent, e mantendo um silêncio preocupante sobre a tão esperada política de paz que prometeu em campanha, permitindo que figuras tristes ligadas ao seu gabinete dissessem disparates sobre disparates relacionados com o conflito na Ucrânia e no Médio Oriente (Walz chegou a afirmar que a nova administração concordava com a posição do regime Biden, nos seus traços fundamentais, em relação ao Kremlin).
Mas nas últimas duas semanas, conseguindo um acordo de cessar fogo entre Israel e o Hamas que vai possibilitar a libertação dos reféns do 7 de Outubro e mostrando-se disponível a abrir linhas de diálogo directo com o Kremlin, enquanto encostou Zelensky às cordas da sua insignificante posição actual, esses sinais já foram bem diferentes, e espera-se que prometam estar mais perto do registo da Casa Branca, daqui para a frente.
Trump pareceu finalmente compreender que na verdade só há um homem que pode fazer a paz na Ucrânia e que é o mesmo que lá fez a guerra: Vladimir Putin. E não adianta de nada a fanfarronice da “paz pela força” pelo simples facto de que os Estados Unidos não têm força para obrigar a Rússia a fazer seja o que for, a não ser que se leve a coisa à guerra termo-nuclear e nesse caso, como todos sabemos, ninguém sairá do cataclismo como vencedor.
Para salvar a face, o Presidente hoje empossado terá que dar a ideia ao mundo que é determinante no processo de paz, mas até para isso precisa de uma ajuda de Moscovo, que por certo será dada, já que Putin é sábio o suficiente para facilitar uma saída airosa ao seu congénere.
O risco das coisas descambarem existe ainda e porém, dada a influência imanente das poderosas forças do complexo militar e industrial americano no governo federal e no Capitólio, sendo que o mesmo podemos dizer da motorização sionista.
E o ContraCultura permanecerá céptico sobre a capacidade da administração Trump para salvar a América. Da mesma forma que a queda da federação se deveu a um processo de décadas, a sua redenção não será possível em quatro anos, nem em oito, partindo do optimista e altamente especulativo princípio de que JD Vance sucederá ao seu chefe em 2028.
Há excessivas falências técnicas e morais nos EUA contemporâneos para que um renascimento seja possível ou até desejável. Apesar de terem sido desde sempre um império em negação, os Estados Unidos são e serão sempre imperialistas. E o seu legado imperial é, para além de frágil, nefasto.
Foram os americanos que ofereceram ao mundo a comida de plástico e a normalização da obesidade; a cultura abaixo de zero dos super-heróis em collants; a industrialização da ideologia de género e da Teoria Crítica da Raça e de todas as suas sinistras ramificações woke; as guerras eternas no Médio Oriente, em África, na América do Sul; o capitalismo anónimo, assente apenas na ganância do accionista e na ambição espúria e desmedida dos gestores de fundos de Wall Street, e mais recentemente, o capitalismo corporativo, baseado numa agenda política de inspiração totalitária, que integra o estado, a imprensa e os conglomerados económicos num feroz complexo de domínio global.
Foram os americanos que ofereceram ao mundo a revolução sexual e os consequentes divórcios em série; a sociedade litigiosa; a eu-pornografia, massificada; a politização da vida privada e a histeria da vida pública.
Foram os americanos que ofereceram ao mundo uma sub-espécie de sapiens que tem como pátria Beverly Hills, agora literal e simbolicamente em chamas, esse firmamento tenebroso de estrelinhas do entretenimento, palhaços ricos que se julgam mais que os outros porque sabem fingir que são heróis e vilões, polícias e ladrões – crianças grandes que ganham a vida a brincar ao faz de conta e que por isso são endeusadas num processo que inverte todos os caminhos que podem resultar em glória.
Foram os americanos que levaram o desempenho desportivo à categoria supra-olímpica, elevando atletas a bilionários e bilionários a arcanjos pelo mérito duvidoso, que está muitas léguas abaixo da virtude do gladiador, de saberem dar uma pancada numa bola (ou no adversário).
Foram os americanos que ofereceram ao mundo os engenheiros assexuados e sinistros de Silicon Valley, e as suas plataformas de rede social – que as pessoas usam para provar que estão vivas, que vão jantar fora e que gostam de se insultar umas às outras – e os seus telefones espertos e as suas aplicações convenientes – máquinas infernais de alienação que transformam os homens em componentes cibernéticos.
Foram os americanos que ofereceram ao mundo a grande depressão de uma viagem Uber.
Foram os americanos que ofereceram ao mundo a substituição da filosofia pela sociologia, da religião pelo consumo, da identidade nacional pelo melting pot.
Foram os americanos que fizeram uma pequena aldeia deste planeta imenso, ao ponto de nele nos sentirmos claustrofóbicos e encarcerados, vigiados e sobrelotados, infelizes como nunca.
Não será por certo Trump, um liberal-nacionalista, que vai salvar a América dos seus males e o mundo dos males da América. Mas, com um pouco de sorte e com a ajuda de Deus, poderemos expectar que sejam os próprios americanos a desistir do seu maligno projecto.
Donald J. Trump será um bom Presidente na directa proporção dessa desistência. E não por vontade dele, claro. Mas por contingência e curso da História.