Sobre os agnósticos, que são uma minoria snob de entre os ateus, escreverei noutra altura, já que este texto tem um só foco: demonstrar que os ateus, que se dizem ateus, não existem. E para esse efeito, recorremos ao método da taxonomia, até porque há uma imensidão de igrejas entre os ateus.
Para já, há o ateu que acredita na ciência, que é um espécime muito comum e que transcende a fauna académica. Muita gente que não percebe coisa alguma de ciência acredita nela. A ciência - ou a razão, para os mais sofisticados discípulos deste culto - é uma espécie de argumento de ouro para quem se declara ateu, um verdadeiro dogma. No imaginário destes devotos, Einstein é divino e aquele senhor com uma pronúncia britânica muito acentuada que faz a voz off dos programas dedicados à natureza e ao apocalipse climático é um verdadeiro messias.
E a propósito, temos também os ateus que são acólitos do apocalipse climático. Os ateus que são acólitos do apocalipse climático são capazes de ser mais ricos em fé do que os mais ortodoxos exegetas do Apocalipse de João. Têm a certeza absoluta do Armagedão e sabem que vai acontecer já amanhã de manhã. E se não acontecer amanhã de manhã, isso não vai abalar a sua convicção mística: é porque acontecerá de certeza absoluta para a semana que vem. E assim sucessivamente. Há um detalhe bem específico nesta doutrina: como é a raça humana que desencadeia o desastre ambiental, a salvação (do planeta) só é possível se morrermos todos. Assim sendo, é provável que uma grande percentagem destes crentes seja cliente assíduo de psicólogos e psiquiatras, que na verdade funcionam como padres e confessores.
Temos também os ateus que são fiéis ao evangelho do globalismo corporativo. Estes encontram-se principalmente nos corredores do poder político e burocrático, nos gabinetes intermédios das grandes corporações e nas redacções dos jornais. A sua visão mística é a de que o Estado é uma espécie de Olimpo e os seus máximos intérpretes agentes celestiais de omnisciência inquestionável. Este séquito tem uma ideia de paraíso que consiste no planeta ser governado apenas por um supremo órgão de poder absoluto e incontestado.
Curiosamente, os patrões e os chefes destes apparatchiks não partilham da mesma religião dos seus subordinados. Estes ateus têm outra religião que é a deles próprios, ou seja, são mortais que aspiram à imortalidade, símios que se julgam divinos. Desconfiam que não vão morrer por que se recusam a acreditar que entidades de transcendência assim desmesurada como aquelas que encontram no espelho não sejam os verdadeiros senhores do universo. Os conselhos de administração de Wall Street, Silicon Valley, Frankfurt e Londres, os eliseus da Europa e os capitólios das américas são o seu ecossistema natural. Encontram-se anualmente para rituais que oscilam entre o mais espúrio onanismo e o satanismo declarado, em estâncias de férias e resorts de luxo. A sua utopia é, assumidamente, uma distopia.
Do outro lado do espectro, temos os ateus populistas. Rejeitam Cristo na mesma medida em que louvam a Trump, a Ventura, a Meloni, a Milei ou a qualquer outro palhaço que lhes seja apresentado como salvador da pátria. Messiânicos tanto como ingénuos, podem ser encontrados em locais de culto improvisados, vulgarmente designados como comícios. Estão em crer que o seu mundo voltará a ser o que era quando viviam infantes, se seguirem com fanatismo solícito as directrizes dos seus líderes políticos de eleição, pelo que esta será, de todas, a mais estapafúrdia das confissões religiosas contemporâneas.
Uma grande fatia de ateus são ferozes idólatras de clubes desportivos. Enfiam-se nos estádios com mais fervor do que os seus avós se acomodavam nas igrejas. Encontram magnífica transcendência e consolo espiritual em derrotar o rival - que é para todos os efeitos um infiel - e têm como Santo Graal a conquista da Liga dos Campeões ou da Superbowl. Adoram os atletas como santos, os treinadores como cardeais, os presidentes dos seus clubes como papas e seguem os jornalistas desportivos do seu agrado com cega reverência. Têm o privilégio de poder ler uma edição diária das escrituras sagradas, sempre igual, mas sempre renovada, que lhes promete invariavelmente mais títulos para o futuro.
Temos também os ateus comunistas, que estão em vias de extinção. A confissão comunista promete amanhãs que cantam glórias, mesmo quando o presente é uma ópera fúnebre. Na sua já longa história de horrores, o comunismo nunca ofereceu aos seus crentes um momento de prosperidade, de paz, de liberdade ou até e ironicamente, de igualdade. Mas a febre mística é intensa e os devotos que resistem não se deixam afectar pelos factos.
Neste catálogo há ainda que incluir os ateus new wave, que se dizem pessoas "muito espirituais". São uma fauna bastante estereotipada de hippies fora do prazo de validade, com convicções religiosas deveras confusas, mas ainda assim holísticas, sobre a natureza humana e os mistérios do cosmos. Procuram encontrar nas drogas psicadélicas justificação para a sua fé e no haxixe alívio para um esquema metafísico que inclui a reencarnação e o veganismo, a consciência dos cristais e o Princípio da Incerteza, o vácuo budista e os solos de guitarra do Jimmy Hendrix, a "força"de George Lucas e, secretamente, a anarquia de Charles Mason. É natural que abusem dos ditos estupefacientes.
Por fim, mas não por último, há a seita dos alienígenas. Esta seita que tem como evangelho e fundamento iniciático o famoso "Eram os Deuses Astronautas" de Erik von Daniken, aposta tudo, contra todas as evidências, que vai ser salva por uma raça superior vinda do outro lado da galáxia para oferecer energia gratuita, conforto perpétuo e paz celestial aos povos da Terra. Estes seres superlativos já cá estiveram no passado e são responsáveis pela engenharia genética que deu um cerebelo ao Homem. Convenhamos, para considerar mais plausível a criação e a salvação por lagartos espertos de Sirius do que a história contada nos dois testamentos será preciso uma dose maior de credulidade do que aquela que qualquer cristão necessita.
E podia continuar, porque há ateus religiosos de todos os géneros. Há aqueles que odeiam cristãos para adorar muçulmanos, há os que estão dispostos a sacrificar a civilização no templo da diversidade e os seus filhos no altar da ideologia de género. Há gente que venera estrelas de Hollywood, âncoras de telejornal e escritores de romances que se vendem em bombas de gasolina. Há teístas que prestam culto nos centros comerciais, e cuja liturgia se consubstancia no consumo de bens e serviços. Há até judeus ateus, que devem ser os mais abstrusos e contraditórios e equivocados ateus de todos.
Mais a mais, muitos destes ateus cruzam os seus credos, num caos mitológico que agrega o Sport Lisboa e Benfica e a Área 51, Vladimir Lenine e Klaus Schwab, Elon Musk e Greta Thunberg, entre outras referências da metafísica popular.
O que não encontramos mesmo são ateus sem deus. Porque o bicho sapiens, amigos, precisa de transcendência como pão para a boca.