domingo, dezembro 07, 2025

Discurso do cristão dissidente.

Durante a maior parte da minha vida fui, desgraçadamente, ateu.

Vivi uns pouco anos de agnosticismo parvo.

Sou hoje um cristão ferrenho, mesmo que desalinhado.

O Blogville sofreu, claro, o mesmo percurso, mas o Contra, graças a Deus, já nasceu evangelizado. E será fiel até ao fim dos seus dias.

Ainda assim, tenho alguns problemas mal resolvidos ou não resolvidos de todo com a confissão nazarena.

O primeiro dos quais é este: sendo certo que Deus existe (o Deus cristão, quero eu dizer), sendo certo que não acredito Nele, antes sei que Ele existe,  parece-me de todo disparatado que este Deus que conheço e sei real e concreto e que sinto presente como o oxigénio que respiro, envie as suas criaturas para um suposto inferninho dantesco quando se portam, na existência terrena, aquém das suas exigentes expectativas.

Convenhamos: por muito belas e verdadeiras e gloriosas que sejam as palavras de Cristo, e são isso tudo e mais alguma coisa, é um dado adquirido que nenhum Sapiens está à altura delas.

Ou seja: seria absolutamente catastrófico condenar ao sofrimento eterno toda a gente que não cumpre com os mandamentos do nazareno e isto já para não falar dos decretos mais antigos que Moisés foi buscar à montanha. 

É verdade que uma das grandes virtudes do cristianismo é essa possibilidade de redenção: acredita em mim e serás salvo. 

Mas há montes de gente, agora e durante as gerações todas da história universal, que não acredita e nunca acreditou no messias ou que nem sequer alguma vez ouviu falar no homem-Deus ou soube das suas poderosas palavras. 

Não teria geografia o inferno para esta gente toda, bem entendido.

Nem me parece, sinceramente, que o Criador esteja disposto a condenar a maior parte dos seus criados a uma posteridade de sofrimentos. 

Isto não faz sentido nenhum. Se tanta gente assim acabar por cair nas chamas do geena, é porque Deus falhou e Deus não pode falhar, porque é, por definição, omnipresente, omnisciente e omnipotente. E, no meu entender, necessariamente misericordioso.

E incluo nesta conversa o Adolfo, o José, o Genghis, e até, mais contemporâneos, o Justin, o Emmanuel, o Keir, o Boris, o Friedrich, a Ursula, o Donald e todos os restantes filhos da puta que tentam transformar este mundo num teatro de horrores.

São criados. Deus é, em última e primeira análise, o responsável pela criação.

Depois, há um outro factor que me deixa um bocadinho desviado da mensagem cristã, se bem a entendo, e que não é muito fácil de explicar: o cristianismo implica o humanismo e eu não sou, nem nunca serei, por muito que me esforce, um humanista.

Não no sentido pegajoso da palavra. Não gosto de pessoas pelo simples facto serem pessoas. Pelo contrário: gosto muito mais da minha cadela do que de 99% dos indivíduos que já conheci na vida. Sem comparação.

E aqui surge uma aparente contradição que é apenas aparente: o meu combate contra os globalistas/transhumanistas que odeiam a espécie humana.

Porque uma coisa é gostar mais da Ofélia do que do Zé Manel, outra coisa é querer acabar com todos os Zé Manel que existem no mundo, ou substitui-los por um Mohamed, ou anulá-los por um algoritmo.

Ou simplesmente - achar que o Zé Manel não tem direito a ser representado na Assembleia da República.

Até porque o Zé Manel paga impostos, como toda a gente, e nesse sentido terá necessariamente que ser representado. 

Entendem-me?

Nisto sou até completamente cristão e à séria: sobre a vida e a morte, só Deus deve ter poder. Sobre a funcionalidade da república, manda o cidadão.

Mas há mais coisas que me fazem desalinhar da linha. Uma delas é a Igreja Católica.

Enquanto fui ateu e agnóstico, sempre tive a tendência para defender a Igreja. E por boas razões. Tratava-se de uma venerável instituição. Conservadora por definição. Antiga como nenhuma, o que não é dizer pouco. Generosa em vários vectores. Poderosa em muitos.

Mas na mesma medida em que fui transitando para a filosofia transcendente de Jesus, mais desconfiado fiquei das suas instituições. 

Historicamente mafiosa e luciferina, a santa madre contemporânea é uma desgraça grande: politizada, corporativa, corrupta, decadente, materialista, espúria até ao vómito.

E, o que mais me desagrada, para dizer a verdade: excessiva e incontornavelmente dogmática.

Experimentei, recentemente, um desgosto pessoal, quando um indivíduo, católico militante, que eu amava como por desventura amo os meus amigos, decidiu insultar-me pelo simples facto de eu ter a "ousadia" e a "pretensão" de interpretar os evangelhos de acordo com o meu livre arbítrio.

Na opinião deste censor, que conheci, ironicamente, como defensor da liberdade de expressão, só pode haver uma interpretação dos escritos dos evangelistas, que é aquela propagada pela igreja. Tudo o resto será "opinião", como se a opinião fosse um pecado maluco e dessacralizador.

Daqui decorre que os evangelhos não podem de forma alguma ser sujeitos à exegese. Mesmo por parte daqueles que os veneram e os leram repetida e obsessivamente, como é o meu caso.

Escapa a este censor que a primeira qualidade dos evangelhos é a de serem textos de prodigiosa qualidade literária, e, nesse sentido, óbvios objectos de recensão.

Escapa-lhe outrossim que Jesus Cristo pregava em aramaico, mas os evangelistas escreveram em grego koiné e os bispos de Constantino, politicamente motivados, seleccionaram aqueles que mereciam entrar na Vulgata, cristalizada e travestida para latim posteriormente por S. Jerónimo, e mais à frente ainda, vertida para a língua alemã por Martinho Lutero e para a língua inglesa pelos calvinistas, também ideologicamente condicionados.

Ou seja: os evangelhos são primeiro uma obra-prima (em formato de de reportagem, principalmente no caso dos sinópticos), depois uma deriva filológica, depois um produto histórico, a seguir um manifesto político, mais à frente um triunfo ontológico e, por último, um texto sagrado.

E não ao contrário.

Na verdade, ninguém pode saber o que Cristo professava, literalmente. Por muito que as palavras que nos chegaram sejam belas, sejam justas ou sejam verdadeiras. Que são, de facto. 

E eu tento ao máximo orientar a minha desorientação por elas.

Mas não me lixem. Não me atirem areia para os olhos. Não me censurem. Não canonizem maus actores. Não escondam que são liderados por padres heréticos, muitos deles pederastas, muitos deles mais perversos do que é higiénico imaginar. Não façam da vossa ignorância instrumento evangélico. Não se esforcem por olvidar as evidências históricas e o simples bom senso. Não me digam o que eu posso ou não pensar. Não inventem infernos. Não me condenem. Não me tentem salvar. Não usurpem o legado de Cristo.

Não tomem o nome do Senhor em vão.