quinta-feira, janeiro 20, 2005

O Cravo Bem Temperado ou como compor com a pauta toda.

"Não me preocupa a sensibilidade dos mortais.
A minha música destina-se aos ouvidos de Deus."

Johann Sebastian Bach


Da maneira que eu tenho de ver as coisas, só há dois períodos na história da música: as trevas da época Pré-"Cravo Bem Temperado” e a idade da luz que se lhe seguiu. Passo a explicar.
Em 1691 um musicólogo mais ou menos obscuro de Halberstadt, Andreas Werckmeister, publica um opúsculo no qual presenteia a humanidade com “as verdadeiras e claras instruções matemáticas” para afinar qualquer instrumento de teclas. Este revolucionário documento revelava aos músicos que era possível afinar o orgão de tal forma que este pudesse tocar, num dado momento, todas as notas. Simplesmente porque os tons e os meios tons não eram uniformes, até esta altura cada obra tinha que ser composta apenas num número limitado de notas, retirando ao compositor a possibilidade básica de escrever música fazendo recurso à integral diversidade da sua escala...
Subdividindo a oitava em doze meios-tons de rigorosa uniformidade, Werckmeister propunha uma solução user-friendly para que, de uma vez por todas, fosse possível escrever música em todos os tons.
Como sempre acontece na história das ideias, a tese iluminada de Werckmeister não encontrou receptividade imediata junto da comunidade musical europeia. Isto, até que, 30 anos mais tarde, um vanguardista do barroco percebesse que aquela era tão só a pedra filosofal da inventiva melódica.
Filho de músicos e musicólogos, amigo de construtores de orgãos, nascido e criado em plena oficina da música, Johann Sebastian Bach era, para além de tudo o resto, um muito competente mecânico. Uma bela manhã, devidamente inspirado pelas mais belas musas que já habitaram o Olimpo das artes, Johann colocou mãos à obra, afinou o seu cravo da forma equacionada por Werckmeister e começou a escrever exercícios de interpretação, levando a sua composição a um nível de complexidade cromática nunca antes experimentada. Concluídos em 1722, estes 48 prelúdios e fugas constituem uma obra de arte incomparável, não só pela mestria do contraponto e da delirante diversidade formal, mas porque usufruindo finalmente de uma liberdade técnica nunca antes imaginada, Bach deu-se a excessos de expressão estilística, justaposições caleidoscópicas de estados de alma e contemplações poéticas que deixariam qualquer Baudelaire em pranto catatónico.
Não que a intenção de Bach fosse compor uma obra prima. Tratava-se antes de um trabalho com fins lúdicos e pedagócicos e o título não deixa equívocos: “O Cravo Bem Temperado, ou Prelúdios e Fugas em todos os tons e semi-tons, ambos com a Terceira Maior ou Dó, Ré, Mi e com a Terceira Menor ou Re, Mi e Fá. Para uso e prática de jovens músicos que desejam aprender, bem como para diversão daqueles já versados no estudo.”
Na verdade, Johann sempre achou este trabalho uma obra menor, de natureza meramente académica. Apesar da modéstia dos seus sucessos em vida, Bach sabia bem (como o sabem todos os eleitos) que o seu talento permaneceria pelos concertos da posteridade e pouco desejaria ver-se celebrado como um simples professor de contraponto.
Três séculos depois, é apenasmente considerado o mais genial compositor de sempre. E o Cravo Bem Temperado contribuiu, em boa parte, para a sua coroa de glória. Afinal, não fosse o engenho divino desta obra e toda a música que foi criada depois seria muito, mas mesmo muito diferente.