quinta-feira, julho 13, 2006
- FASCÍCULO DOIS -
Foi o caso que decidiu a Junta de Freguesia, por altura dos idos de Março, acordar o sempre lamentável torpor estético dos fregueses - somente os devidamente registados no último censo - reunindo-os para desfrutarem da exposição de pintura de naturezas mortas, organizada para prover a algumas carências da prendada autora, D. Hortense Luz, viúva, notável poetisa e espírita conceituada. Anunciado generoso beberete, arrancadas à naftalina fatiotas de uso para solenidades maiores, deslocaram-se as gentes para o serão cultural.
Segismundo d'Ávila figurava na ponderada lista de convivas, sendo que se lhe solicitara, com respeito, na sua qualidade de homem das artes, uma dissertação crítica final, quanto às capacidades de D. Hortense Luz na difícil representação da natureza morta, inspiração que vestia de magnífico luto dada a recente e dolorosa partida do notabilíssimo esposo, notário reformado, homem muito religioso e contribuinte assíduo para o seminário da diocese.
Considerou Segismundo que o convite tão dignificantemente posto pela cáfila de palermas da Junta não afectaria a sua indiferença por eventos daquela pequenez e, antes, lhe proporcionaria uma oportunidade para desnudar certas complexidades e dogmas da arte menor que antevia no horror do nabo morto, esparramado no barro de hilariantes arabescos, da murcha gardénia tristemente espartilhada em qualquer jarrão de plástico de feira e de outras obscenidades que sabia inevitáveis naqueles objectos de mansa estupidez.
Não lhe era indiferente a artista D. Hortense. Com efeito, havia-a lobrigado antes, empanturrando a trágica viuvez em cremes de chantili pelos lugares do costume, lubricamente embrulhada de negro curto, decote vasto, salto alto para sugestivo suporte da acentuada rabadilha e outras magnificências que surpreendentemente o haviam perturbado, que lhe tinham movido a gélida fleuma e penetrado a férrea armadura da sua impassibilidade.
Naquele dia, as vermelhuscas bochechas de José Fagundes, benquisto Presidente da Junta, sacudiam-se de gozo na recepção janota, aprimorado de cravo rubro na lapela, sensibilizado pelo transparente entusiasmo dos seus correligionários, congregados em notável euforia junto do bufete pungente de cor e acaramelados mimos, expressamente encomendados na Primorosa do Chiado. Acotovelavam-se os grupinhos, esfarrapavam-se os finos biscoitos e os celebrados queques de manteiga, olhavam-se compenetradamente as naturezas mortas a 2 euros o metro quadrado, entre múrmurios cautelosos e pálidos sorrisos. Saracoteava-se a festejada D. Hortense, dente aberto num sorriso escancarado, oferecendo queques e chá, movimentando as contundentes nádegas enquanto anotava, conscensiosamente, alguns metros quadrados de venda apalavrada.
Sempre colado à insigne criatura, o ex-seminarista Ruben Perdigoto - que fora, em tempos, do foro íntimo do notário tão dolorosamente arrancado à vida e era agora acólito do bom padre Tristão nas missas de Domingo - sorria, servil. Devotado às coisas da sacristia, presença abençoada, dizia-se, na preparação das sagradas coisas do culto de Deus, notório homossexual, gábiru de orgias inconfessáveis que não teriam merecido o consenso da rígida directoria do seminário; do qual, pela indecente figura, fora afastado; a Ruben Perdigoto interessava-lhe mais a comissão estabelecida com D. Hortense sobre a venda da arte que elogiava, recomendava e impunha aos mais cépticos.
(cont.)