domingo, janeiro 14, 2007


A miserável história do ser humano está insuportavelmente preenchida por magos do futuro. Entre astrólogos e bruxas, oráculos e videntes, profetas de longa vida e belas barbas, junkies e filósofos, romancistas russos e ensaístas americanos, políticos e cineastas e cientistas e jornalistas, temos um muito respeitável portfólio de génios que se deram ao trabalho de espreitar para o dia de amanhã - ou para o século depois - com uma seriedade que oscila entre a vocação apocalítica (o fim do mundo como objecto de desejo) e a fé num mundo melhor (conceito que, se colocado em prática, desvaria estranhamente num mundo pior).
Bem vindos, portanto, ao universo extremo do adivinho.


PRIMEIRO CAPÍTULO
OS PROFETAS: QUE DEUS NOS PROTEJA DELES.


"As coisas que prometi no passado já se cumpriram, e agora vou lhes anunciar coisas novas, para que vocês as saibam antes mesmo que elas aconteçam." - Isaías 42:9

De certa maneira, os profetas constituem uma estirpe de poetas bastante competentes, apesar da excentricidade dominante. Têm visões no deserto (sem lsd) e tiram delas as mais fantásticas - para não dizer fantasistas - conclusões que se podem imaginar. Sobem ao cimo da montanha e vêm muito para além da curvatura da Terra. São carismáticos, relativamente bem sucedidos e gostam de reinar sobre as audiências. Aqui e ali, nota-se até algum exibicionismo. Assustam com sustos-arrepios na espinha, espantam mais que espantalhos na seara alheia; juízes e carrascos do futuro, condenam à barda e executam bastante. Rogam pragas de juízo final a toda a gente. São grandiloquentes em palavras e por acções e sabem que vão ficar para a história (regra geral, têm contrato assinado com os deuses). São todos personagens de dimensão mitológica.

Dentro desta classe de gente notável destaco, com o suspeito sentido cronológico que podemos atribuir a criaturas olímpicas, uns quantos mais divertidos. Devo advertir que deixo de lado sistematizações futurologistas como os oráculos gregos, ou representações de feira como os astrólogos famosos. Não nos levam a lado nenhum de interessante e são essencialmente imediatos: acabam por incomodar pouco o percurso danado da História.
Evito outrossim personagens operáticos de grande calibre como Buda (e os budas), Krishna e Maomé porque, sendo considerados profetas, eram mais doutrinários que proféticos. Buda não tentou adivinhar o futuro porque não acredita no factor tempo, Krishna foi pastor, guerreiro e professor mas não arriscava uma aposta e Maomé era um líder político e militar com mais que fazer do que perscrutar as estrelas.
Outras fantásticas cabeças serão concerteza omissas por minha ignorância e descontracção natural. Que por isso me perdoem os eruditos, os enciclopedistas, os bibliotecários e todos os sábios irmãos de Jorge Luís Borges.

No princípio era Abraão.
Herói do Antigo Testamento (primeiro capítulo - Genesis) e pai das três religiões do Mediterrâneo que sobreviveram à antiguidade, Abraão (1800 - 2000 A.C.?) era filho de Terah, descendendo de Adão em 20 gerações e de Noé em 10. No seguimento de uma conversa com Deus (ou de uma sucessão de más colheitas) decide carregar a sua tribo pelo deserto na senda de Canãa, a terra da abundância, onde profetiza o nascimento de uma grande nação. Para convencer os cépticos e os preguiçosos garante-lhes o carácter eleito da tribo, e a consequente responsabilidade de se arrastarem pelo deserto à procura do leite e do mel e da posteridade (leia-se: redenção).
Esta história é estranhamente parecida com a de outro artista da família e também herói deste romance (segundo capítulo - Êxodo): Moisés, um pouco mais tarde, iria conduzir os judeus do Egipto para a terra prometida, à conta da mesma profecia, odisseia de 40 anos (1250-1210 A.C.) e diversas peripécias literalmente bíblicas (às tantas aborreceu-se e, para atalhar caminho, abriu via por entre as águas do Mar Vermelho).
A verdade é que ambos morreram de velhos (com 175 e 120 anos de idade, respectivamente), pelo que isto de passar décadas a palmilhar as dunas do médio oriente deve ter qualquer segredo de Matusalém que escapa à medicina moderna.

Zaratustra e o mundo perfeito.
Zaratustra, o Persa (VII A.C.), nasceu de uma virgem (a ideia foi depois plagiada), facto que ele próprio deve ter achado bem divertido, já que, acabadinho de sair do útero de sua mãe, abandonou-se a uma convulsivo ataque de riso. Eremita empedernido e voz alarvemente ignorada pelos ouvidos do seu tempo, foi muito provavelmente a figura que inspirou o remate ideomático do latim: “vox clamantis in desertum”. A sua profecia ensinava sobre o futuro que o mundo não duraria para mais de doze mil anos que é o preço temporal a pagar pela perfeição. A presença periódica e policial de outros Zaratustras e de um tal de Saoshyant (uma espécie de Jesus com turbante) iria preparando entretanto os bons e condenando entrementes os maus da respeciva fita. No fim, Luke Skywalker trinfa sobre Darth Vader e as almas sobem à redenção de uma outra dimensão física, já que nada de perfeito pode subsistir num mundo decadente. Uns bastantes séculos mais tarde, Nietzsche recuperou o mito de Zaratustra para a sua missão contra-cristã e divertimento intelectual da modernidade (lá iremos).

Dois Isaías e uma boa nova.

Parece que o Livro de Isaías tem duas identidades literárias: o Proto Isaíais e o Dêutero-Isaías (nomenclatura líndissima pela qual já valeu a pena a trabalheira que este post está a dar).
O Proto Isaías viveu entre 740 e 681 A.C. e fica para a história como um chato: irredutível crítico social, passa a vida a censurar as práticas de ricos e pobres, reis e súbditos; quizilento palrador, consome-se em pragas contra os Assírios; político feérico, não se cansa de injuriar sem parcimónia todos os bandidos do deserto e os demais cortesãos barrigudos. Apesar da imaginação fértil no que à reprimenda diz respeito, as suas profecias eram as do costume: no fim da orgia há-de vir o castigo de deus com fogo no céu e sangue na estrada.
Dêutero-Isaías (provavelmente um nome de código para vários autores do exílio babilónico do século VI A.C.) chega-nos num embrulho mais simpático, porque foi o primeiro pivot do telejornal da metafísica cristã a anunciar a chegada de um servo de deus que faria regressar o seu povo às areias de Judá. Este tal Dêutero fica assim no boneco da história das religiões como o primeiro profeta messiânico do Antigo testamento, o que não é dizer pouco.

O estranho caso do mago Daniel.

Um dos ilustres redactores do antigo Testamento, Daniel (VI A.C.) foi o vidente de serviço do Rei Nabucodonosor e grande bruxo da Babilónia, depois de ter sido para lá arrastado como despojo de guerra. Um judeu na Babilónia é para aí o equivalente contemporâneo de um Albanês em Nova Iorque, mas nem isso impediu o acertivo profeta de subir na vida: interpreta sonhos, alucina imenso e dá ares de mago, perfil de sucesso no enquadramento burocrático da altura que o ascende a conselheiro real e anunciador fatalista de um destino histórico meio hegeliano, que caminha de império em império até ao juízo final. As visões constantes do seu Livro, são surpreendentemente atrevidas. A primeira serve a razão política e trata sobretudo das minudências administrativas e dos conflitos domésticos do reinado de Nabucodonosor, prevendo, algo temerariamente, a decadência e loucura do monarca. A segunda visão ainda é mais revanchista: lamenta o jugo a que foi submetido o povo eleito e promete vingança. A terceira trata os inimigos dos judeus abaixo de cão, enquanto a quarta e última se dedica a descrever com detalhe gráfico os acontecimentos “ao cabo do tempo”, incluindo a proverbial redenção do povo de deus e condenação dos seus inimigos aos horrores da morada do grande Satã. O facto de Nabucodonosor aturar e sustentar o judeu Daniel, cujas visões o remetiam à insanidade terrena e à condenação eterna, transcende a minha imaginação.

João contra todos.
Este apóstolo de Jesus é um incondicional do apocalipse. Depois de uma visão 3D Dolby Surround na ilha de Patmos, João (?-103 D.C) redige o Livro da Revelação do Apocalipse, onde anuncia a subida dos mares (primeiro adivinho do aquecimento global) e apresenta à humanidade uma besta de sete cabeças e dez chifres, com pés de urso e cara de leão, acompanhada de um dragão que, digo eu, há-de vir a chamuscar a lança de S. Jorge. Não contente com o poder de destruição da sua besta, anuncia uma segunda. Apesar de contar menos oito chifres, esta besta segunda ainda é mais malvada que a besta primeira e recebe o apropriado baptismo: 666 (aqui há direitos de autor). Presume-se que este animalzinho simpático é para aí uma encarnação de Belzebu, já que o seu objectivo aparente é o de acabar com a raça dos homens, raptando pelo caminho o maior número de almas possível, para alimento dos altos fornos do inferno ou posterior resgate chorudo. A dominante cenográfica da profecia é própria de um filme de Cronenberg e a coisa é, em geral, sanguinolenta. Diria eu que a S. João talvez fizesse falta um acompanhamento clínico mais competente, dada a evidência do seu patológico ódio pela humanidade. Mesmo assim, tem o seu crédito: para discípulo de um artista pop, era um tipo muito heavy metal.

Cristo, o meta-profeta.
Para além da visão muçulmana do Nazareno como prosélito de Maomé, a abordagem a Jesus Cristo como profeta está na penta-esencialidade do seu mito. Para os cristãos Jesus não é um profeta, é O Profeta, muito simplesmente porque a sua vida é o cumprir da profecia.
Por outras palavras, dizer que Jesus é o profeta é o mesmo que dizer que ele é o Messias.
Segundo o evangelho de Lucas, Jesus reconhece que a unção profética anunciada por Isaías se referia á sua pessoa:
“Jesus veio a Nazaré onde se tinha criado. Segundo o seu costume entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista. Enviou-me para mandar em liberdade os oprimidos e a proclamar um ano de graça da parte do Senhor.
Depois enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então a dizer-lhes: Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura que acabais de ouvir.” (Lc 4, 16-21).
Isto é que é ter classe. E coragem. E sentido histórico. Por estas e por outras é que a coisa não acabou assim lá muito bem.
Seja como for, o meta-profeta é o rei desta comédia. Afinal, até o relógio das eras foi acertado pelo fuso transcendente da sua existência.

Nostradamus e a invenção do Passatempo.

Para um homem que sofria de epilepsia psíquica, gota, insuficiência cardíaca e dificuldades respiratórias (morreu vítima de um edema cárdio-pulmonar), Nostradamus (503-566 D.C.) foi até um versador/vidente de notável prodigalidade.
Médico, alquimista, crítico literário, conselhero de reis, astrólogo e astrónomo, este prolixo adivinho era até um excelente poeta e um dedicado editor de almanaques que incluiam previsões sobre o estado do clima e as convulsões políticas, conselhos aos agricultores, horóscopos e outros presságios mais ou menos proverbiais.
As suas profecias compõe-se de 942 quadras em versos decassílabos e anunciam todo o tipo sortido de guerras, pragas, catástrofes e desgraças futuras. Por ser muito dado à charada e à metáfora, a informação surge truncada de tal forma que é de uma imprecisão escrupulosa. As profecias de Nostradamus só se confirmam quando eventos entretanto desencadeados são colados a um qualquer dos seus versos enigmáticos e nunca ninguém conseguiu prever fosse o que fosse baseado nestas famosas escrituras. Charlatão ou mago, o que interessa é que Nostradamus inventou uma espécie de Sudoku Ontológico para as gerações vindouras que queimaram muita pestana na vã tentativa de desvendar estes insondáveis versos.
Pesquisas contemporâneas feitas aos seus escritos pelas universidades de Ottawa, Cambridge e Sobborne, revelam aliás que o famoso personagem se inspirava em eventos que já tinham acontecido à altura da sua vida para versar sobre factos futuros, o que não deixa de ser um método razoavelmente credível, já que, como todos sabemos, a história tem a terrível mania de se repetir.

(cont.)