quarta-feira, abril 25, 2007

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Vai para uns anos que me assalta esta convicção de que, por trás do espírito criador, está a pulsão obsessiva de desenvolver as tentativas necessárias para realizar uma grande Obra Única. A preocupação nítida do génio não é a diversidade estética, é a unicidade semântica. Nesse sentido, todo o autor imortal se repete e repete na tentativa de atingir, dentro do seu registo eleito, um estado de graça purinho e deleitoso. A tese que defendo é a de que o romancista imortal aspira somente pela redacção de uma história absoluta. O cineasta monstro sagrado só deseja captar uma sequência perfeita. O génio renascentista não pede mais que autorização para decorar aquele específico tecto da capela onde o Papa vai à confissão. O mestre do barroco pretende apenas chegar à plenitude de saber compor um andamento que entre na frequência modulada de Deus.

O primeiro ministro desta tese é, obviamente, o Senhor Homero. Num livro só (não foi ele que dividiu a história) contam-se a totalidade das rábulas possíveis e imaginárias e estão lá integralmente os personagens que foram ser o barro da literatura como a conhecemos hoje. Por exemplo, todo o vilão é por natureza literária um Agámemnom e podemos facilmente identificar um Ulisses ou um Aquiles nos personagens mais distantes de Ítaca que pudermos conceber: Astérix é Ulisses em baixinho, Obelix é Aquiles em gordalhucho. Toda a estrela de Hollywood é uma Helena e é talvez por isso que a duração média dos casamentos em Los Angeles não excede as 24 horas.

Seria impossível defender este teorema sem a preciosa ajudinha de Jorge Luís Borges. Gostava que algém me explicasse em que é que o Aleph é diferente da História Universal da Infâmia, por exemplo. É a mesma maravilhosa coisa, vezes sem conta: corredores e corredores de literatura no caminho para o mistério. Lá chegados ganharemos a imortalidade se soubermos voltar para trás. Imaginem que Hegel nasce em Buenos Aires com queda para a matemática e vai todos os dias à biblioteca municipal para fazer musculação. Mas ao contrário.
A cartografia um por um dos impérios de Borges corrobora que se farta aquilo que estou para aqui a escrevinhar.

Goethe também não me falha com argumentos: Werther - um Páris sem tirar nem por - é um fantasma omnipresente que emsombra toda a literatura alemã, mas caramba, eu tenho cá em casa as obras completas do bom Wolfgang, já li quase tudo e o desgraçado adolescente percorre o portfólio inteiro de fio a pavio. Werther é Goethe enquanto Rousseau. Werther é a filosofia liberal a levar a necessária porrada da vida. O encanto estético e o desencanto político. E isso está sempre lá.

Outro grande campeão desta minha rábula é Kafka. Franz esteve sempre a esgalhar um livro apenas, ponto final. A história é esta: o homem é impotente perante o seu destino trágico. Será uma barata, será um escravo, será um burocrata, será pequeno perante a amurada, não interessa. O que é importante é o fado e o facto do fado escapar à responsabilidade individual. Todos os heróis de Kafka são Heitor.

James Joyce, esse grande pirata, vem aqui ao caso e não só por causa de Ulisses, que é um mero conteúdo. Joyce é um formalista. E todos os seus escritos sagrados são essencialmente de virtude técnica. É muito nítido à minha percepção que mais lhe importava o contar a história do que a história em si própria. É essa a sua singularidade. É essa a sua mensagem sobre o tempo.

Mas virando o disco: que raio fez Bach pela história da arte senão repetir o princípio básico de que a música é um elemento de transcendência? Toda a pauta do homem é uma oração. Tenho aliás a certeza humilde mas firme de que o Kapelmeister concordaria com este post. Ele mesmo tratou de informar a posteridade que certos prodígios como o Cravo Bem Temperado ou as Variações de Goldberg não passam de meros exercícios de oficina e que os concertos de Brandeburgo não vão para além da ciência política. Não era por coisas pequenas como estas pequenas coisas que o meu querido Johann queria ser lembrado, não. Os ouvidos de Deus são mais exigentes que todos os caprichos do Príncipe de Dresden.

O bem amado Stephen Merrit vem a este propósito porque dedicou uns anos da sua gloriosa vidinha a compor 69 músicas de amor. A repetição ad nauseam do mesmo tema como fundamento estético está na base do grande feito criativo. Não se pode eleger um tema neste albúm pela simples razão que as 69 cantigas são só uma. E eis algo de alquímico.

E Hopper, bom deus, que evidência! O homem limitou-se a seguir por uma variação única. A substância cenográfica é invariavelmente a da mais intensa solidão humana; tela sobre tela, os personagens iguais, as cidades indiferentes, as sombras cópias. Basta olhar para um quadro de Hopper para ler a sua ambição estética.

Quanto a Picasso, qualquer pessoa que conheça a obra levantada previamente para atingir a grandiosidade narrativa de Guernica percebe que o homem só quis na vida conseguir pintar, por uma vez, algo assim.

Outro maluco, Warhol nunca deixou por um momento que fosse de aperfeiçoar um mesmo retrato do mundo. Os bonecos dele são nitidamente ensaios para uma obra una e conceptual e os filmes são experiências desse laboratório. A arte é uma filosofia, é uma ideia de Feuerbach. Nasce para que se repita até ao zen absoluto. O primeiro filme de Andy dura para aí umas sete horas. É o registo fílmico de uma noite bem dormida pelo poeta John Giorno. Nem vale a pena dizer mais nada.

A propósito de película, o grande mestre Howard Hawks, que é um valente campeão desta tese, fez a mesma fita três vezes. Em três filmes um único enredo reescrito sempre pelo mesmo guionista. John Wayne é por 3 vezes o mesmo herói e Robert Mitchum é em duas das tentativas o lamentável bêbado que encontra a redenção. Falo, claro, de Rio Bravo, Eldorado e Rio Lobo. Hawks quis esgotar o modelo até à perfeição e não importa nada se o primeiro filme é ou não, de facto, o melhor pedaço de cinema. A arte não é uma qualidade, é uma perseguição.

E já agora: Kubrick passou a vida à procura do mesmo mistério e o Tom Cruise é igualzinho ao Peter Sellers. Ambos são Aquiles. Os dois são Ulisses. Spielberg fez só um filme, porque todos os filmes de Spielberg são os necessários volumes de um manual de normas para a Boa Estética Popular. E no que ao Senhor Lars Von Trier diz respeito, ainda não consegui detectar as diferenças entre Dog Ville e Europa. E acho difícil que alguém me faça ver para além das semelhanças.

Podia, também eu, entrar na espiral divina da repetição e ficar para aqui horas e horas nisto de vos prometer que Shakespeare só desejava criar uma peça de teatro, que Velasquez trocaria todas as suas telas por uma tonalidade de vermelho, que Pessoa só escreveu a Tabacaria, que Steinbeck não valorizava a imaginação tanto como a repetição, que Mozart nunca rezou por mais que um refrão divino ou que Hitchcock morreira satisfeito na mesma, se só tivesse dirigido aqueles segundos em que os corvos desatam a mordiscar a Tippi Hedren, mas já basta o que basta. Pelo menos por agora.