sábado, novembro 08, 2008
Elogio da NFL.
Estou completamente vidrado na NFL. A sério que acho o futebol de contacto dos americanos um desporto esteticamente deslumbrante, intenso, complexo, hiper-táctico, hiper-físico, vertiginoso. Uma vez que o quarter back recebe a bolinha, os restantes 21 malucos em campo ficam ligados a uma corrente de voltagem nuclear: atiram-se uns contras os outros em fúria épica, correm que nem doidos na perseguição, escapam-se por embustes de prestidigitador e arrancam a velocidades sónicas; há pés que dançam contra toda a lógica e corpos que se esticam desafiando a gravidade, que se lançam sobre os limites plausíveis da termodinâmca, que se maltratam selvaticamente à revelia do bom senso anatómico.
No meio desta tourada há artistas e operários, velocistas e facínoras, heróis e brutos, génios e carrascos, aristocratas e plebeus, como na vida. O que acontece ao contrário desta é que todos têm consciência do seu papel exacto no jogo e não se metem a fazer aquilo que não sabem. Não há cá petits a marcarem livres directos, nem nunos assiz a distribuirem jogo. Cada um faz o que sabe. As equipas de futebol americano são constituídas por planteis extensíssimos, porque cada partida exige a colocação em jogo de várias equipas especialistas, mas, em princípio, a maior parte dos jogadores não chega a tocar na bolinha. Se um gladiador, que está ali para gladiar, por acaso acaba por ficar com a bola nas mãos, o que faz é correr com ela sobre as jardas até que alguém tenha a decência de levar o sujeito ao nível da relva, altura em que o jogo pára, para que o elíptico objecto seja entregue a quem sabe melhor o que fazer com ele.
Quanto aos artistas, é-lhes reservado o prazer do ataque. O quarter back é o maestro do jogo e está ali para passar a bola ao running back atrás de si ou lançá-la para os wide receivers que no momento tentam desesperadamente ludibriar os seus marcadores directos, umas dezenas de jardas lá à frente. É claro que pode simplesmente ter os tomates para correr ele mesmo com a bolinha por ali fora, embora esta atitude de ninja lhe possa custar a integridade física e é por isso que é rara. A integridade física de um quarter back é algo de muito importante no jogo, porque enquanto o homem está a decidir o que fazer, a maior parte da equipa adversária tenta acabar com a sua posição vertical como se o mundo fosse acabar logo de seguida. É por isso que uma parte importante do jogo se passa no combate corpo a corpo à volta deste género de prima dona. Apesar da defesa estar ali para o proteger, o quarter back nunca tem mais que uns pequeninos segundos para tomar e executar uma decisão, pelo que deve ser um tipo bastante jeitoso de mãos e muito cool under pressure.
Eu gosto especialmente do running back, que é lindo de ver. Sempre que o quarter back tem a brilhante ideia de lhe colocar a bola nas mãozinhas, é vê-lo lançar-se com arrepiante valentia contra a confusão instalada. O objectivo, claro, é passar por entre ela, mas se houver molhada, so be it. Um running back comum faz tudo o que for preciso para ganhar meia jarda; um dos extraordinários pega na bola e faz as 100 jardas de seguida que é quanto mede o terreno de jogo. Corre, finta, dança, empurra, esmurraça, salta por cima, passa por baixo, distribui pontapés e estaladas, enfim, faz pela vida. Digamos que é muito difícil convencer um running back de que é bem pago. E eles são todos milionários.
O wide receiver é o gajo com asas nos pés. É o tipo que depois de correr que nem um louco pelo campo a dentro se vira de repente para trás, como que telecomandado, para receber, com precisão mecanicista e extraterrestre, a bendita bolinha e rumar, se puder, para o touchdown, momento de todas as catarses. Para ser wide receiver na NFL um humano tem que ser ágil como o homem aranha, esquivo como o homem morcego, determinado como o homem da regisconta e principalmente rápido como o homem olímpico: quem não faz os 100 metros abaixo dos dez segundos e cinquenta centésimos não joga na liga.
A NFL é um produto de entertenimento sem paralelo e a liga, muito ao jeito americano, controla tudo de uma forma hiper-profissional e orwelliana. Não há cá meninos a receberem fortunas em Manchester e a namorarem Madrid. Não há cá empresários livres para fazer rodar os jogadores com o olho esperto posto nas comissões sobre as transferências. Nem há cá nunos gomes a ganharem 24 mil contos por mês. Os jogadores são avaliados em função dos seus números (nº de jardas conquistadas, nº de passes completos, nº de derrubes efectuados, nº de touchdowns, nº de pontos marcados, etc. etc. - os americanos contam tudo) e é em função desses números que podem ganhar isto ou aquilo. É claro que mesmo os ordenados dos jogadores que apresentam menos resultados são elevadíssimos, mas há um princípio de mérito que é de razão prática e de que eu gosto.
E gosto, enfim, do aparato cenográfico, dos equipamentos, das transmissões televisivas, dos jornalistas que relatam e analisam e comentam, e dos spots e trailers e sites que vendem o jogo. Gosto desta indústria porque está bem montada, diverte e entusiasma; serve bem o desporto. Ouvir os comentadores da NFL e depois mudar de canal para o Guimarães - Paços de Ferreira que está a dar na Sport TV é como substituir a leitura de Cícero pela prosápia de Santana Lopes.