terça-feira, setembro 04, 2012

Ensaio Sobre a Cegueira.

O Travassos opera à velocidade espantosa de três cegos por hora.
São cegos curáveis, claro, com retinas disfuncionais e córneas destruídas.
São cegos com esperança. A pior espécie de cegos que há.
Andam de lá para cá, no labirinto da clínica, 
Com pensos nos olhos, com peso nos ombros, 
Com as pupilas dilatadas e com a alma encolhida;
Esperam, cabisbaixos; esperam, vulneráveis; esperam, religiosos;
Pelo exame, pela consulta, pela gloriosa e redentora faca hi-tec do Travassos.

O Travassos não faz milagres, mas cura para cima de cem cegos por dia;
Os curáveis, claro, porque os cegos que são mesmo cegos são corridos com desprezo.
(Enquanto o Travassos perde tempo com os cegos incuráveis
Não pode curar os cegos curáveis à razão de três mil por mês).

O Travassos não gosta de se explicar aos cegos. 
Nem aos curáveis nem aos incuráveis.
Ele faz o que faz, os cegos curáveis passam a ver 
E os cegos incuráveis continuam invisuais
E é assim.

Como o Travassos é, na verdade, um bruto, as enfermeiras sentem a responsabilidade
De ser tão simpáticas, tão prestáveis, tão piedosas,
que tratam os cegos curáveis como se fossem cegos incuráveis,
O que causa alguma confusão aos que não são cegos 
- Aos que estão lá só para fazer companhia aos cegos -
Porque assim é impossível distinguir
Os cegos com esperança dos cegos desenganados.

Ao Travassos raramente lhe falha a faca:
É um homem com uma missão.
Já aos cegos, falha a coragem:
são como crianças sem pernas,
Que se arrastam de lá para cá, aflitos,
nos corredores do Centro Cirúrgico de Coimbra.