segunda-feira, janeiro 21, 2013

No dope, no hope.

Em Defesa de Lance Armstrong em particular e do ciclismo em geral.



A comunicação social tem participado activamente e, como sempre, com alegria apocalíptica e total irresponsabilidade na crucificação pública de Lance Armstrong. Nesta circunstância está bem acompanhada pelas altas instâncias do ciclismo internacional e por um movimento de fundo de refinada hipocrisia que reúne as sensibilidades anti-americanas do costume à mistura com a tradicional xenofobia e pesporrência dos franceses. 
Como admirador do atleta norte americano e fã do ciclismo profissional, devo prestar à gentil audiência os seguintes esclarecimentos que me parecem determinantes para um claro entendimento do fenómeno do doping nesta modalidade.


1 - A maior parte dos ciclistas de topo dopam-se ou doparam-se. 
É um facto.

Casos recentes.
O sucessor natural de Lance Armstrong e actual ídolo da modalidade - o espanhol Alberto Contador - não correu a última Volta à França por envolvimento no caso de doping conhecido por Operación Puerto.

O vencedor do Tour de 2011 e por muitos considerado o melhor ciclista australiano de sempre, Cadel Evans, reuniu-se em 2000 com Michelle Ferrari, o tristemente célebre médico/guru considerado um dos pioneiros do uso de EPO no desporto.
 Em sua defesa, Evans afirma que se reuniu com o médico apenas para saber se tinha condições de transitar de ciclista BTT para ciclista de estrada, desculpa que não convence ninguém. Até porque Michele Scarponi, vencedor da Volta a Itália 2011, foi suspenso em Dezembro último por três meses pelo Comité Olímpico Italiano (CONI), devido às suas reuniões com o mesmo médico.
Alexander Vinokourov, bandeira do desporto do Azerbeijão, bravo campeão olímpico de estrada em Londres/2012, protagonista de alguns dos mais belos momentos do Tour nos últimos dez anos, foi afastado da edição de 2007 por uso de EPO.
Frank Schleck, o prodígio luxemburguês e um dos poucos ciclistas capazes de dar luta a Alberto Contador, retirou-se de forma muito suspeita da última edição da Volta a França, depois de ter acusado um diurético (Xipamide), que está contemplado na lista das "substâncias especificadas".
Alejandro Valverde, o actual líder da equipa Movistar (onde corre Rui Costa), foi punido
por 2 anos, em Maio de 2010, por uso ilegal de substância dopante.

O ciclista escocês David Millar esteve detido durante três dias na sequência de uma investigação judicial ao consumo e tráfico de dopantes na Cofidis. No interrogatório, o campeão mundial do contra-relógio terá confessado que consumiu Eprex, um medicamento à base de eritropoietina (EPO).

Riccardo Riccó, uma promessa do ciclismo italiano, foi afastado do Tour em 2008 por uso de substância dopante. Suspenso por dois anos voltou à competição em 2010, mas em 2011 foi despedido pela sua equipa depois de ter adoecido por ter administrado a si próprio uma transfusão de glóbulos vermelhos. Em consequência deste episódio foi suspenso até 2024.
Rémy di Grégorio, outro ciclista da Codifis,  foi detido em pleno Tour do ano passado, para se explicar à polícia sobre a suspeita de utilizar substâncias ilícitas.

Richard Virenque, rei da montanha no Tour por sete vezes e o melhor ciclista francês da última década, foi detido em Maio de 2011 depois de ter reconhecido a administração de produtos dopantes.
Em 2009, Danilo Di Luca, segundo classificado na Volta a Itália desse ano, acusou Eritropoietina.
Em 2007, Michael Rasmussen, rei da montanha nos Tours de 2005 e 2006, não compareceu para a recolha de urina e foi afastado da competição.
 
Ivan Basso, vencedor da Vuelta por duas vezes e um habitual nos dez primeiros do Tour, admitiu a intenção de usar EPO e foi suspenso por dois anos.
Oscar Pereiro confirmou o uso de doping na Volta à França de 2006 onde foi segundo classificado. Floyd Landis, o ciclista norte americano vencedor dessa edição, acusou níveis elevados de testosterona na 17ª etapa e foi considerado culpado pela Justiça Desportiva dos Estados Unidos. 
Ainda nesse ano, os italianos Alessandro Petacchi e Leonardo Piepoli, bem como o espanhol Iban Mayo testaram positivo no Giro.
Em 2005, Roberto Heras acusou EPO dois meses depois de ter ganho a sua quarta Vuelta. Foi desclassificado e a vitória foi atribuída a Denis Menchov. Este mesmo Denis Menchov que, em Outubro de 2012, admitiu ter trabalhado com o tal senhor Ferrari...
Quanto a casos recentes é melhor parar por aqui, em 2005, por razões de economia.
Lembro-me apenas de um ciclista importante que não foi ainda envolvido nestas teias e que é o vencedor da última edição do Tour: Bradley Wiggins. E, muito sinceramente, até acredito que o rapaz está limpo (sou muito ingénuo).

Lendas do ciclismo contemporâneo.
O mais notável ciclista italiano das últimas décadas, vencedor das edições de 1998 do Giro e do Tour, Marco Pantani, foi expulso da modalidade por uso de EPO e morreu com uma overdose de cocaína.

Em 1997, Laurent Brochard e Christophe Moreau foram expulsos da Volta à França por uso de substâncias não divulgadas.
Jan Ulrich, muito provavelmente o melhor ciclista alemão de todos os tempos, vencedor do Tour em 97 e da Vuelta em 99,  eterno rival de Lance Armstrong, foi suspenso 2 anos por envolvimento no escândalo Operación Puerto.

Laurent Jalabert, campeão do mundo de Contra-relógio em 97, vencedor de Vuelta de 95, vencedor da classificação por pontos do Tour em 92 e 95, rei da montanha desta prova em 2001 e 2002, outro grande ciclista francês, único na história do Tour a ganhar a classificação por pontos e da montanhaviu-se envolvido no "Cahors Affair" e acusado de organizar verdadeiras orgias de droga.    
Laurent Fignon, vencedor do Tour em 1986 e 1987 e do Giro em 1989, admitiu em 2009, um ano antes de morrer vítima de cancro, que usou anfetaminas e cortisona.
Joaquim Agostinho perdeu duas voltas a Portugal, das cinco que conquistou na estrada, por abuso de substâncias dopantes e no Tour de 1973 foi penalizado com dez minutos na corrida e dois meses de suspensão, pelas mesmas razões.
Eddy Merckx, considerado o melhor ciclista profissional de todos os tempos, cinco vezes vencedor da volta a França e outras cinco vezes vencedor do Giro ("só" ganhou uma Vuelta) acusou por três vezes substâncias dopantes no sangue.
Deste relato de heróis drogados, salvam-se apenas Bernard Hinault e Miguel Indurain. Mas as excepções não servem sequer para confirmar a regra: Hinault correu nos anos 70 e 80, quando o controlo anti-doping era raro e deficiente. E Miguel Indurain competiu durante os anos 90, quando o consumo de EPO já era generalizado no pelotão internacional, mas não existia simplesmente qualquer controlo sobre a sua utilização. 

História do doping na Volta a França.
O doping no Tour tem a idade do Tour e os atletas drogaram-se livremente ao logo de décadas com as substâncias mais perigosas que se possa imaginar: nitroglicerina, estricnina, cocaína, cortisona, esteroides, mezinhas cozinhadas por feiticeiros africanos, hormonas de toda a ordem, analgésicos de todo o género, etc., etc., etc.
Nos anos 40, o doping era aceite como um recurso normal e só na segunda metade dos anos sessenta é que certas drogas começaram a ser proibidas.
No entretanto, há histórias absolutamente arrepiantes que contam casos em que os ciclistas colapsavam e, já caídos no asfalto, continuavam a pedalar. Ou que estavam simplesmente demasiado drogados para conseguir apertar os travões e, nas descidas, caiam pela montanha a baixo.
Para um conhecimento um pouco mais profundo de toda a história do doping no Tour, a Wikipédia tem uma entrada bastante razoável, aqui.

Ciência.
Um recente estudo realizado por matemáticos franceses sobre a performance dos atletas nas principais competições do ciclismo internacional nos últimos 116 anos, revela que a rapidez dos ciclistas disparou desde a década passada, sem qualquer explicação fisiológica ou tecnológica, precisamente na altura em que a dopagem com EPO se disseminou pelo pelotão de elite.

Abrangência.
Há muitos, mas mesmo muitos mais casos de doping no ciclismo. Mas o doping não é um problema do ciclismo apenas. Lamento muito, mas se os critérios anti-doping aplicados no ciclismo fossem extensivos, por exemplo, ao Hóquei no Gelo, ao Futebol Americano, ao Futebol ou à Esgrima, estou certo que estas modalidades já teriam desaparecido por falência moral. Nem vale a pena estar aqui a enumerar muitos exemplos. Todos sabemos que os jogadores de futebol jogam muitas vezes "infiltrados" e outras vezes "vitaminados". E seria impossível aos atletas da NFL competirem sem estarem medicamentados contra a dor. Pelo contrário, muitos deles estão de tal forma medicamentados contra a dor que chegam a jogar com ossos partidos (pode parecer estranho para nós europeus, mas garanto-vos que é uma situação comum).
Uma lista bem extensa do fenómeno do doping nas mais diversas modalidades encontra-se aqui para consulta.


2 - As três provas rainhas do ciclismo internacional constituem um desafio sobre-humano.
Quem segue as peripécias do Giro, do Tour ou da Vuelta, sabe bem que estas provas são criadas por sádicos. Há etapas no Tour de France em que os ciclistas sobem aos Alpes por cinco vezes em duzentos quilómetros. Etapas com quatro prémios de primeira categoria que terminam num quinto de categoria especial. Etapas que são desenhadas para serem cumpridas por extra-terrestres. Ou por seres humanos sujeitos a uma variada dieta de medicamentos, regimes alimentares e métodos dopantes como o EPO.
Lembro que aqui não se trata de ciclo-turismo, mas de alta competição. Os atletas de topo cumprem estas etapas num ritmo alucinante, debaixo de uma pressão enorme, perante milhões e milhões de espectadores. E não são só as subidas que dramatizam a corrida a níveis desumanos. Nas descidas, acontece frequentemente que as motas que transportam os operadores de câmara não conseguem muito simplesmente acompanhar o ritmo vertiginoso dos ciclistas. Os que caem nestas circunstâncias, e são bastantes, correm geralmente risco de vida.
A Volta à França é, na minha opinião, o mais duro desafio do desporto mundial, e os homens que a terminam nos primeiros 20 lugares da classificação são verdadeiros heróis do nosso tempo, mesmo que dopados até aos cabelos.
A propósito do EPO: o processo destina-se a aumentar os glóbulos vermelhos no sangue, de forma a que o atleta disponha de mais oxigénio disponível no organismo, o que lhe permite índices de eficácia respiratória e de resistência física muito superiores ao comum dos mortais. Este método é proibido, mas há outros que o não são, apesar de perseguirem os mesmo objectivos no organismo: por exemplo, o de colocar os ciclistas em câmaras hiperbáricas durante a noite. Ora, não se percebe porque raio existem formas de batota que valem e outras que não valem.


3 - Lance Armstrong foi, por sete vezes, primeiro entre iguais.
Conhecedor das suas capacidades e dos seus limites, Lance Armstrong não quis ser, nem seria nunca, o melhor ciclista da história do desporto. Em vez disso estabeleceu como meta ser o melhor ciclista da história da Volta à França. E a verdade é que o conseguiu. Com coragem, determinação, elegância e fair play. Sim, fair play. Porque jogando fora das regras da Union Cycliste Internationale, Armstrong correu dentro da lei do resto do pelotão: drogado como os outros todos. E ainda assim, melhor do que todos os outros. Retirar-lhe agora os títulos é um disparate enorme, até porque esses títulos serão entregues a outros atletas que se dopavam mais ou menos com a mesma constância, mais ou menos com o mesmo profissionalismo. E se retiramos aos ciclistas contemporâneos os seus títulos, porque estes se doparam, que fazer com a os campeões de outras eras, em que o controlo anti-doping nem sequer fazia parte da rábula?
Lance Armstrong é, provavelmente, o ciclista mais controlado de sempre. Estava constantemente a fazer xi-xi para o penico da organização. Mas nunca foi apanhado no decorrer de uma prova. Onde estão os responsáveis por esta escandalosa incompetência?


4 - Os jornalistas são os palhaços deste circo.
Como sempre, os jornalistas não ajudam à festa. Quando, numa etapa de montanha, se dá o caso de nenhuma das figuras de proa do pelotão estar disposto a atacar,  os comentaristas são os primeiros a qualificar esta passividade como cobardia, calculismo e cinismo, entre outras virtudes do género. Isto quando as razões pelas quais os atletas não atacam nas etapas de montanha são bem conhecidas, a saber:

Razões Tácticas - Leiam-se por razões tácticas todas aquelas relacionadas com o conhecimento antecipado que o ciclista tem de que vai ser controlado nesse dia, tendo evitado, por conseguinte, a normal dosagem da sua droga favorita.  

Razões Físicas - Entendam-se por razões de ordem física as que dizem respeito à administração de uma solução de Eritropoietina com um escasso grau de pureza, que resulta apenas no inconveniente de uma arritmia.

Razões psicológicas - Leiam-se por razões psicológicas aquelas que derivam do senso comum. O atleta não pode estar sempre a atacar, ou será rapidamente suspeito de utilização de substâncias ilícitas, pelo que a probabilidade de ser controlado à chegada vai aumentar exponencialmente.

É claro que os jornalistas que aviltam os atletas por não atacarem nas etapas de montanha são os mesmos que aviltam os atletas que se dopam para poderem atacar nessas etapas. Por isso, eu acho que a Volta à França deveria ser antecedida por uma "Volta à França da Imprensa". Esta volta só precisava de ter uma etapa com, digamos, cem quilómetros de extensão e duas contagens de alta montanha. Os senhores jornalistas punham-se em cima de uma bicicleta e faziam-se ao caminho. Quem baixasse a média horária de, digamos, 25 km/h, era apanhado pelo carro vassoura. O carro vassoura estaria equipado com um lança chamas.


5 - Os maus da fita.
Neste grande pelotão de vilões que é o ciclismo profissional, os ciclistas são os intérpretes mais honrados. São eles que dão espectáculo. São eles que sofrem os horrores da corrida e das drogas a que se submetem. Os outros bandidos estão lá só para ganhar dinheiro e ganhar dinheiro, por si só, não garante glória nenhuma. Os vilões que nos devem preocupar são os traficantes, que ganham fortunas a vender drogas caras a equipas ricas; são os médicos, que administram estas drogas; são os directores técnicos, que permitem e promovem o uso das drogas, são as multinacionais que dão nome e fôlego financeiro a estas equipas de drogados, de forma a conseguirem recuperar o elevado investimento; são os organizadores das competições, que engendram provas impossíveis; são os comissários que fazem as análises e que, por corrupção ou incompetência, não detectam coisa alguma.
Os ciclistas, sujeitos à voragem da opinião pública, pagos principescamente para ganhar provas impossíveis, confrontados com equipas que permitem ou promovem o uso de drogas que tornam as provas possíveis, com médicos que auxiliam a posologia e com um controlo deficitário ou cúmplice, cedem naturalmente a uma tentação inescapável. No dope, no hope. É a vida.


6 - Conclusão e sugestões.
A mentalidade reinante actualmente na Union Cycliste Internationale é a da fuga para a frente. Mesmo quando o abismo é tão visível como assustador. A versão oficial é a de que a culpa é dos atletas e de dois ou três diabos que por aí andam a tentar os atletas. E assim, os grandes campeões continuam a ser injustiçados e criminalizados e humilhados em praça pública, sem que o desporto ganhe com isso coisa alguma. Uma federação não pode transformar os seus heróis em criminosos. É contraproducente.
Não defendo aqui, obviamente, que a UCI permita o uso de drogas no ciclismo. Tal seria abstruso e perigoso. Nem tenho a pretensão de dominar um conjunto de soluções absolutas para o problema. Mas defendo que se assuma, de uma vez por todas, que o método pelo qual se tem tentado combater o doping no circuito profissional não serve os interesses do desporto. E defendo mais: a implementação urgente de uma filosofia de "Estaca-Zero" que inclua:
- Indulto para todos os atletas acusados de doping. 
- Re-atribuição dos seus títulos.
- Reavaliação dos critérios que definem o que é doping do que não o é; 
- Estabelecimento de normas a partir do efeito criado no atleta e não pelo método como esse efeito é induzido (a câmara hiperbárica e o uso de EPO procuram o mesmo objectivo, mas o primeiro método não é considerado doping).
- Diminuição dos dias de prova, da extensão das etapas e do número de etapas de montanha, bem como do número de prémios de primeira categoria e de categoria especial em cada etapa, nas 3 competições principais do circuito internacional (Giro, Tour, Vuelta). 
- Criação de uma comissão de controlo anti-doping independente das instâncias desportivas, fazendo recurso, por exemplo, às universidades.