O editorial do dia 1 de Janeiro de 2014 do New York Times é a definição de como entrar no ano novo com o pé esquerdo. Neste texto infame, assinado pelo conselho editorial, é solicitado ao Presidente Barak Obama que conceda a Edward Snowden um perdão que lhe permita voltar impunemente ao Estados Unidos e que seja até empregado de novo pelo estado americano, como uma espécie de paladino do direito à privacidade dos cidadãos.
Recordo que Snowden é neste momento procurado pelas autoridades americanas e pela Interpol por ter desviado da NSA um massivo corpo documental de informação classificada, que fez depois publicar, parcialmente, no diário inglês "The Guardian", abrindo assim a maior fuga de informação secreta da história das nações.
O que a fuga de informação revelou é que, aparentemente, a NSA tem acesso às comunicações de toda a gente que, no planeta, encete comunicações. Do Zé Maria Ninguém à chanceler alemã, ninguém escapa ao implacável escrutínio destes draconianos serviços de inteligência.
A espúria hipocrisia que rodeou, desde o início, a cobertura mediática deste caso sempre me fez uma alergia brutal. Passo a explicar:
1. Desde o fim dos anos 90 que é sabido que existe um programa de escuta global - o Echelon - criado em parceria por americanos, canadianos, ingleses, australianos e neo-zelandeses. Este programa secreto-não-tão-secreto-assim destina-se precisamente a espiar tudo e todos. À parte de um problemazito com a França, por causa de um negócio que a Boeing roubou à Airbus através do recurso a este sistema de escutas, não houve escândalo.
2. A NSA não é uma outra CIA. A agência existe precisamente com o fim de recolher informação pertinente para a gestão da segurança dos Estados Unidos da América. Os seus espiões não são operacionais "under cover" nem homens de acção especialistas em "black ops": são engenheiros de sistemas, técnicos de informática, matemáticos. Fecham-se nos seus gabinetes a inventar processos de desincriptação e escuta que lhes permitam obter um corpo de informação inacessível de outro modo.
3. Qualquer serviço secreto de informação e inteligência opera, por definição, à margem da lei. As nações que agora se manifestam com indignação perante os documentos publicados por Snowden, como a França, a Alemanha, a Rússia e o Brasil, também têm, como é óbvio, serviços de recolha de informação estratégica para a condução optimizada dos seus interesses. Os serviços de inteligência brasileiros devem ser bastante beras, porque há uma contradição em termos no facto concomitante de se ser brasileiro e de se ser inteligente, mas alemães, franceses e russos, só para falar nestes três casos, têm um historial de serviços secretos cujos métodos são muito pouco recomendáveis e, naturalmente, ilegais.
Aliás, não estou bem a ver como é que a NSA, ou qualquer outro serviço deste género, pode operar com base em preceitos legais. Se a NSA operasse dentro dos limites da lei americana e do direito internacional, os americanos não precisavam da NSA. O que não faltam são empresas privadas, do género Dun & Bradstreet, que recolhem, dentro dos limites legalmente consagrados, informação sobre empresas e cidadãos. Em Portugal também havia uma, a Mope, mas entretanto foi vendida aos espanhóis e fundida num conglomerado qualquer. Aliás, em Portugal também há um serviço secreto de informações que opera além do que a lei permite, chamado SIS, que é muito bera, porque há uma contradição em termos no facto concomitante de se ser português e de se saber manter um nível básico de secretismo.
4. Quando se assustam as pessoas com a ideia terrífica de que a NSA tem um olho nas suas mensagens de email e um ouvido nas suas conversas telefónicas, o que se está a fazer é um guião para Hollywood, em vez de jornalismo. Qualquer sapiens com uma quantidade bastante reduzida de bom senso, que não se dedique a actividades menos recomendáveis como o resgate e despenhamento de aviões em arranha-céus ou a detonação de engenhos explosivos em lugares de convergência, deve saber perfeitamente que a sua privacidade estará assegurada, no contexto das garantias dadas pelos operadores de telecomunicações que contratou, claro está. Os gestores de produto do Google e do Facebook - esses sim - espreitam todos os dias para dentro dos nossos conteúdos comunicacionais, de forma desavergonhada, mas apesar disso as pessoas continuam tranquilamente a subscrever os seus serviços. Ainda por cima, estas escutas decorrem de interesses meramente comerciais, que são, convenhamos, de ordem inferior à salvaguarda da segurança dos cidadãos e dos estados.
5. Edward Snowden é um traidor à sua pátria e deve ser tratado como tal. Ao fazer publicar os documentos altamente sensíveis que fez publicar, este desgraçado comprometeu seriamente a capacidade operacional da NSA e, logo, prejudicou muito significativamente a produção de informação pertinente para a defesa dos interesses estratégicos americanos e da segurança de pessoas e bens no seu país.
Nem é casual o facto de ter sido nem mais nem menos que o senhor Putin a dar santuário a este foragido. Snowden é um inimigo da América. E Putin sabe bem que os inimigos dos seus inimigos, amigos dele são. O simples facto de um espião da NSA ser agora um foragido que aceitou o santuário do senhor Putin já diz muito sobre o seu estatuto de renegado.
Não sou, de todo, um defensor da pena de morte. Não por causa dos valores humanistas, que valem o que valem (leia-se: nadinha), mas porque é um método bárbaro e moralmente questionável de resolver o problema da criminalidade. Abro porém excepções para terroristas e traidores. Os primeiros porque, pela qualidade dos seus actos, se colocam para além de qualquer paradigma moral, os segundos porque, pela dimensão ciclópica dos prejuízos que causam a toda uma sociedade, devem ser castigados de forma exemplar.
A CIA já devia ter espetado um tiro na cabeça tonta deste rapazinho atrevido. E se não o fez é porque, ao contrário da NSA, a CIA é uma organização muitíssimo incompetente.
É absolutamente deprimente que um jornal americano com a história e o estatuto do New York Times tenha a desfaçatez de publicar este editorial. É também um alarmante sinal dos tempos e da arrepiante desintegração ideológica que está a acontecer nos Estados Unidos. Um conselho editorial que não percebe os danos que Snowden provocou no aparelho de segurança americano está dentro do nível máximo da estupidez humana. O problema, é que os editores do NYT não são assim tão estúpidos. São radicais. São perigosos. E, desde o dia 1 de Janeiro de 2014, são cúmplices do próximo atentado islâmico que acontecer em terras do Ocidente.