segunda-feira, maio 26, 2014

A união céptica.



"I think frankly when it comes to chaos you ain't seen nothing yet."
Nigel Farage


Nunca como ontem as eleições para o Parlamento Europeu foram tão sumarentas. Uma verdadeira mina de conteúdos. Senão vejamos:

A abstenção tem significado.
Dois em cada três portugueses não foram votar, registando a abstenção valores máximos históricos. Por muito que os dirigentes políticos queiram assobiar para o lado, torna-se evidente que a legitimidade democrática, já de si muito subtil no contexto da União Europeia, está a desaparecer por completo. Mandatos enfraquecidos pela indiferença do eleitorado não podem criar políticos fortes. E políticos fracos não podem esperar mais que a abstenção massiva. É um ciclo vicioso que os regimes europeus e os burocratas de Bruxelas não conseguem contrariar. E, se analisarmos o trend das últimas décadas, a perspectiva assustadora de níveis de absentismo na casa dos 70 e dos 80% é bem real. A democracia ocidental, como a conhecemos, pode morrer assim.

Seguro não tem futuro.
Francisco Assis primeiro e António José Seguro depois dedicaram-se ontem, de forma alarve e desavergonhada,  à arte da pantomina, mas dificilmente desviaram fosse quem fosse da verdade escarrapachada nos números: o partido que ganhou estas eleições foi também o seu principal derrotado. Apesar de fazer oposição a um governo inepto e desastrado, apesar de contar com a insatisfação de uma grande fatia do eleitorado, apesar de ser levado ao colo pelos media e por algumas empresas de sondagens que deviam ser extintas pela hilariante Comissão Nacional de Eleições há já muitos anos, apesar de não haver ninguém no PS com coragem para o remover da cadeira da estupidez onde está sentado, Seguro não foi além dos 31,4%. A aliança da direita, mesmo somando números mínimos na história da Terceira República, ficou dentro da margem de erro, principalmente se tivermos em conta que 66,1% do eleitorado não foi votar. Seguro é um líder tão fraquinho, tão fraquinho, mas tão fraquinho, que é impossível não ter pena dele. Só que, felizmente, os portugueses não votam por pena.
Hoje, está a levar porrada de todos os lados do partido que, com eloquente mediocridade, lidera: do insuportável Galamba ao perigosamente desocupado Carlos César, é malha que ferve. E merecida. O P.S. vai realmente deixar que este sujeito corra o risco de ser Primeiro Ministro? E, nesse caso, o país vai realmente eleger este indivíduo para primeiro ministro? Espero, muito sinceramente, que não. Se os socialistas já habituaram a história aos maiores disparates, o eleitorado português tem, ao longo dos últimos 40 anos, demonstrado algum tino.

Portugal não tem governo.
Os cenários que se podem projectar a partir destas eleições para as legislativas que se seguem são de pesadelo:
- Cenário de pesadelo 1 - Vitória do P.S. de Seguro sem maioria absoluta. Implicará a necessidade de constituição de um governo de coligação à direita, com o PSD ou com o CDS. Seguro e Passos ou Seguro e Portas. Haverá piores visões do inferno?
- Cenário de pesadelo 2 - Vitória do P.S. de António Costa sem maioria absoluta. Implicará a necessidade de constituição de um governo de coligação à direita, com o PSD ou com o CDS. Costa e Passos ou Costa e Portas. Haverá piores visões do inferno?
- Cenário de pesadelo 3 - Vitória do P.S. de António Costa com maioria absoluta. Liberta o P.S. para nos colocar outra vez na bancarrota.
- Cenário de pesadelo 4 - Vitória da coligação PSD / CDS sem maioria absoluta. Implicará a necessidade de constituição de um governo de coligação à esquerda, com o PS. Passos, Portas e Seguro. Haverá pior visão do inferno?

O Bloco de Esquerda morreu.
O mais belo momento operático da noite de ontem foi-nos generosamente concedido pelo Bloco de Esquerda. Entre a incompreensível euforia inicial e o conformismo derradeiro, triunfou, claro, a verdade dos factos. O Bloco morreu e paz à sua alma.

O Partido Comunista ainda está vivo.
Ao contrário, o Partido Comunista Português dá sinais de uma vitalidade verdadeiramente notável. Com um candidato competente na presença mediática e a retórica do costume, apocalíptica e alienada, conseguiu um dos melhores resultados eleitorais de sempre. E agarrou a iniciativa política, com o anúncio de uma Moção de Censura que vai inevitavelmente rebocar o infeliz do Seguro para um parque ideológico bastante comprometedor.
O P.C. é um fenómeno que merecia toda uma academia de doutoramentos em ciência política. Ou em psicologia social. A forma como resiste à erosão da história, sem mudar uma vírgula na forma e ainda menos no conteúdo, é simplesmente inexplicável e só tem paralelo na Igreja Católica.

Os epifenómenos não passam disso mesmo.
Hoje, o Observador deu-se ao trabalho de projectar que a votação de Marinho e Pinto, se fosse transposta para as eleições legislativas, colocaria 12 deputados na Assembleia da República. Eu aprecio o zelo, mas o exercício é espúrio. Nas eleições legislativas O MPT não terá sequer metade dos votos que teve agora porque os eleitores não são completamente estúpidos e votam em função da importância de cada eleição e da especificidade de cada mandato. Epifenómenos como Marinho e Pinto acabam invariavelmente submersos pela espuma da realidade das coisas. Mais eleição, menos eleição e já ninguém se lembra disto.

A sobrevivência do centro direita europeu, numa conjuntura difícil.
O parlamento europeu vai continuar a ser dominado pelo centro direita. Na generalidade, os partidos nacionais democrata-cristãos resistiram a um contexto muito difícil, já que se encontram, também na sua maior parte, no exercício do poder e ainda a braços com uma crise financeira que deveria trazer proveitos à esquerda socialista e social-democrata. Não foi isso que aconteceu. E mais por demérito da esquerda que por mérito da direita, na verdade. Parece-me já há alguns anos que, confortavelmente instalada na poltrona da superioridade moral, a esquerda europeia não percebe que os seus velhos fundamentos ideológicos, nascidos da natural ingenuidade do pós-guerra, não são apelativos à burguesia de agora, muito simplesmente porque a burguesia de agora não está disposta a continuar a pagar a factura do estado social e dos devaneios humanistas, relativos a um mundo que já não existe.

A eclosão e a diversidade das "extremas direitas".
Entre as novas e velhas extremas direitas e extremas esquerdas eleitas para o Parlamento Europeu, também há muitos epifenómenos que não têm mais significado que o da situação. E a situação é a de que está toda a gente bastante irritada com a miserável performance das lideranças políticas, tanto no seio das nações como nos corredores da organização que esforçada, mas desastradamente, as tenta manter unidas.
Os casos da senhora Le Pen e de Nigel Farage, têm porém muito que se lhes diga. A Frente Nacional e o UKIP são partidos muito diferentes, com acentuadas divergências ideológicas e de praxis política. A família Le Pen defende um conservadorismo autoritário e xenófobo que tem raízes profundas no tecido social francês, evidentes nos últimos 150 anos da sua história. Farage movimenta-se num outro território, entre o populista e o liberal, numa Inglaterra que não tem de facto espaço para autoritarismos desde 1688. Aliás, o UKIP é condenado pela taxinomia mediática à extrema direita apenas porque os fascismos de direita do século XX foram mais destruidores na Europa Ocidental do que os fascimos de esquerda. Todo o desgraçado que se sente à direita de um partido democrata cristão (na Europa continental) ou conservador (no Reino Unido) é imediatamente rotulado como extremista. O que é, obviamente, redutor. E falacioso. Tanto mais que não faltam por aí radicais de esquerda, profundamente anti-democráticos e anti-sistémicos, que são tratados - e classificados - de forma muito mais simpática.
Salvaguardadas as diferenças, o UKIP e a Frente Nacional partilham ainda assim um importante cavalo de batalha: a emigração. E, a confiar na quantidade maluca de votos que recolheram, seria bom que os responsáveis pelas políticas de emigração dos países da União parassem um bocadinho para repensar este assunto. É que quando o emprego começa a escassear, quando os rendimentos dos nativos diminuem perante a prosperidade dos emigrantes, quando a segurança e a qualidade de vida é ameaçada, o instinto sobrepõe-se rapidamente à capacidade filosófica e as coisas podem de repente ganhar uma dimensão dantesca. Como já, muitas vezes, aconteceu na Europa.

Uma união de egoístas.
A República Checa tem dez anos de União. Mas os dois partidos mais votados são eurocépticos. A ironia disto é típica de deuses galhofeiros como são os deuses da democracia. A própria expressão "eurocéptico" dá-me vontade de rir. Se há países eurocépticos na União Europeia, porque raio é que se mantêm na União? E se há partidos eurocépticos que dominam o panorama político dos seus países, porque diabo é que não fazem o favor de tomar decisões no sentido de abandonarem a organização de que tanto desconfiam? E que bem pode fazer a uma união de nações a integração de países que não acreditam no seu projecto e espírito?
É claro que um eurocéptico, na verdade, é apenas alguém que acha que a União serve muito bem enquanto for apenas um instrumento que possibilite bons proveitos económicos, ao jeito colbertiano. O cinismo é admissível e faz parte da condição humana e da triste história das nações, mas irrita bastante. E condena a União Europeia a um reflexo fantasmático do que poderia realmente ser.

Devem estar a brincar comigo.
Cada vez me parece mais injusto que, numa união de egoístas, seja a Alemanha constantemente acusada de agir no seu exclusivo interesse. É preciso ter lata.