sexta-feira, fevereiro 24, 2017

O humor segundo RAP: ofício belo, nobre, indispensável e inútil.

Por Nuno Miguel Silva
Texto publicado a 27/01/17 no Jornal Económico

Não esperem anedotas, nem chistes. Este senhor, já o sabemos, leva o humor muito a sério. Ainda bem, dizemos nós...  Em pouco mais de cem pagininhas, Ricardo Araújo Pereira (RAP) embarca-nos numa fabulosa viagem à volta do humor, no livro editado no final do ano passado pela Tinta da China, com o sugestivo título “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”.

“Esta é a minha hipótese: humor, ou sentido de humor, é, na verdade, um modo especial de olhar para as coisas e de pensar sobre elas. É raro, não porque se trate de um dom oferecido apenas a alguns escolhidos, mas porque esse modo de olhar e de raciocinar é bastante diferente do convencional (às vezes, é precisamente o oposto), e a maior parte das pessoas não tem interesse em relacionar-se com o mundo dessa forma, ou não pode dar-se a esse luxo”, alerta RAP no texto escolhido pela editora para a contracapa da obra. Onde se aprende ainda que “somos treinados para saber o que as coisas são, não para perder tempo a investigar o que parecem ou o que poderiam ser”, pelo que este último livro de RAP, segundo o próprio, “procura identificar e discutir algumas características dessa maneira de ver e de pensar”.

E há pérolas cristalinas neste ensaio despretensioso de RAP. Aqui vai um exemplo: “O riso subverte o medo. Corrói-o, domina-o, torna-o mais pequeno”. É o que o autor faz como leitor, para depois lhe dar a graça de conviver nesta jornada com alguns dos cérebros mais fulminantes da espécie humana. Platão, Hobbes, Dickens, Chaplin, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Quentin Tarantino, Goethe, Cervantes, Vasco Graça Moura, James Joyce, Oscar Wilde, Lewis Carroll, Woody Allen, Camilo
Castelo Branco, Kant, Mark Twain, Monty Phython,Voltaire, Chico Buarque, Buñuel, Ricky Gervais, Fernando Pessoa, David Lodge, Alberto Pimenta, Samuel Beckett, Jacques Tati, Schopenhauer, Chesterton, Kafka, Freud, Jerome K. Jerome, Manuel António Pina, Jerry Lewis, Barão de Munchhausen, Miguel Esteves Cardoso, Dean Martin, Brueghel, Kevin Costner, Henri Bergson, Diderot, Aristóteles e muitos outros são alguns crânios que RAP coloca em diálogo com o leitor, com ritmo e assertividade a toda a prova. Para não falar de referências à Bíblia, ao Livro de Pantagruel ou mesmo às energias do Super-Homem, Muhammad Ali ou George Foreman...

Um deleite. RAP socorre-se de Shakespeare, no ‘Hamlet’ incontornável. Diz o protagonista, com tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen: “Onde estão agora as tuas troças, as tuas cabriolas, os brilhos da tua alegria que faziam romper na mesa um longo riso? Nada te resta agora para troçares da tua própria careta! Não tens beiços nem língua. Vai agora ao quarto da dama da corte e diz-lhe que, mesmo que ela ponha uma camada de pintura da grossura de umdedo, esta há de ser um dia a sua imagem. Faz que ela se ria disto”.

E o autor remata: “Não conheço melhor definição do trabalho do humorista. Fazer com que as pessoas se riam desta ideia: por mais que façam, vão morrer. Fornecer-lhes uma espécie de anestesia para esse pensamento. É um ofício belo, nobre, indispensável e inútil: sim, o riso tem o poder de esconjurar o medo, mas só durante algum tempo, talvez apenas durante o tempo que dura a gargalhada. Às vezes, nem tanto”.

Mais um exemplo da teoria bem arquitetada de RAP sobre o que é o humor, ou seja, “uma estratégia para reagir ao sofrimento”, “uma espécie de mau perder que leva o humorista, não a adaptar-se ao mundo, mas a afeiçoá-lo a si - mesmo que, para isso, tenha de dobrá-lo, torcê-lo, virá-lo do avesso”.

Conclui RAP que “na verdade, é quase nada, mas é o que há”. Será que a culpa é do Benfica?...