quinta-feira, abril 08, 2021

Ironias do destino ou como a ingratidão,a ignorância e a arrogância dos europeus em relação aos americanos os pode salvar do esquizofrénico processo revolucionário em curso.

You may be sure that the Americans will commit all the stupidities they can think of, plus some that are beyond imagination.
Charles de Gaulle

"We must put aside certain social-science theories entirely imported from the United States.”

Emmanuel Macron . "Fight against separatism – the Republic in action" . 02/10/20

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Agradeço aos deuses o facto de viver num mundo que não obedece aos meus espúrios desejos.

Dou um exemplo pelo qual sou grato desta divergência entre a minha vontade e os desígnios insondáveis que motorizam a realidade: como europeu, passei décadas a defender o projecto e o ideário americano e a combater a desconfiança (é dizer pouco) que a generalidade dos nativos do velho continente nutrem pelos Estados Unidos. Em vão, claro. À minha direita, nostálgicos do estado corporativo e betos do CDS sempre acharam que do outro lado do Atlântico só vivem bárbaros obsesos e analfabetos, sorvedores de ketchup, perigosos ultra-liberais sem qualquer noção de dever, cultura, honra ou sentido moral. À minha esquerda, a maior parte da malta alimentou a ideia de que a federação do Uncle Sam é um império pior que o soviético e ficou, mesmo que secretamente, muito triste quando o muro de Berlim caiu. Para estas lamparinas o típico americano é, contra todas as evidências, uma espécie selvática de nazi (mas sem as elegantes fardas Hugo Boss), capitalista depravado ou esclavagista impenitente, imperialista ganancioso e armado até às gengivas, que tem como última agenda o domínio global através da força bruta e do consumo de pipocas. Por uma vez de acordo, a esquerda e a direita europeias  convergiram e convergem na simplória e redutora representação dos americanos como ignaros incivilizados. 

Na verdade, verdadinha, sempre achei que os europeus conseguiam ser mais ignorantes dos americanos do que os americanos conseguiam ser ignorantes de tudo. Mas adiante.

Ora, no momento da história em que nos encontramos, dou graças às entidades do Olimpo que deixaram grassar essa desconfiança, esse muitas vezes mal reprimido ódio, essa indisfarçável serpente da inveja com que os Europeus premiaram os americanos durante décadas, mesmo quando os Estados Unidos os salvavam dos seus próprios e trágicos sarilhos, como aconteceu na primeira Guerra Mundial, na Segunda Guerra Mundial, durante toda a guerra fria, nos conflitos balcânicos e etc. E porquê? Porque é precisamente, embora não exclusivamente, por causa dessa distância ontológica, desse nojo histórico, que a revolução niilista-marxista-woke não navega de vento em popa na Europa. Se excluirmos o Reino Unido e a Irlanda, que sempre e por razões óbvias estiveram mais próximo dos interesses americanos e mais susceptíveis à sua influência (e que por isso sofrem agora e deveras com as políticas de identidade importadas dos EUA), o continente europeu mantém-se algo reticente na adopção das linha orientadoras da nova esquerda americana.

Ninguém fala aqui no velho mundo em alterar a lei eleitoral de forma a que não seja necessário um documento de identidade para votar. Ninguém defende aqui a abolição da polícia e é capaz de ser difícil eleger aqui um presidente ou um primeiro ministro que não consiga subir um lance de escadas sem evitar o desastre, ou pronunciar um parágrafo sem se perder na conversa. Não encontramos na Europa continental procuradores que se dediquem a punir a opinião em detrimento de perseguir o crime. Não temos presidentes da câmara que apoiem movimentos de vandalização das estruturas urbanas (com excepção da Catalunha), nem prosperam os políticos que defendam abertamente programas de acção radicais e apocalípticos como o Green New Deal de Alexandra Ocasio Cortez, a congressista americana que bate todos os recordes de extremismo ideológico que são possíveis de imaginar. E por muito que a imprensa seja suja em todo o lado, e é, por muito vendidos e bandidos que sejam os jornalistas em toda a parte, e são, se de novo excluirmos os britânicos e obscenos megafones da BBC e do The Guardian e de outros veículos propagandísticos deste corrupto clube, não há na Europa máquinas de mentir, de silenciar, de censurar, de omitir e de manipular como as actuais máquinas mediáticas americanas.

Também não há ainda sinais de que os heterossexuais europeus sejam insultados por não quererem ter relações íntimas com transexuais. Não há ainda sinais de que os homens brancos sejam insultados por serem homens brancos. Não há ainda sinais de que cumprir horários seja um hábito racista. Não há ainda sinais de que a exactidão matemática seja um sintoma de racismo sistémico. Não há ainda sinais de que as universidades ensinem os seus alunos a ter vergonha da história dos seus países ou a considerar que a justiça (no sentido jurídico ou moral) seja um instrumento de regulação social sobrevalorizado.

Não há ainda sinais que se distribuam vacinas, ou subsídios públicos, segundo um critério rácico e posso estar enganado mas não tenho conhecimento que existam na Europa muitas bibliotecas que convidem drag queens para entreterem crianças na hora do conto, ou que prosperem na União Europeia e arredores uma quantidade preocupante de clínicas que, até sem autorização dos pais, administrem bloqueadores de puberdade a infantes que ainda nem sequer atingiram a adolescência.

Acresce que em toda a Europa registamos movimentos que se vão levantando contra o império woke anglo-saxónico. Em França, Macron e, quem diria, significativa parte do universo académico local, já recusam aberta e veementemente as tendências esquizofrénicas que chegam manifestas em língua inglesa. Neste caso, a torrente programática de insensatez extremista anglo-americana é vista - e bem - como uma ameaça à cultura francesa e a rejeição das políticas de identidade e do fanatismo ideológico woke encaixa-se perfeitamente num quadro de outras recentes medidas implementadas pelo governo gaulês que finalmente procuram fazer face à deterioração do tecido social que derivou de décadas de imigração descontrolada de milhões e milhões de muçulmanos que não se identificam minimamente com os pressupostos civilizacionais do país que os recebe.

Em Itália, como em Espanha, como na Polónia, como na Rússia, como na Hungria, assistimos quotidianamente a movimentos contra-revolucionários, populistas ou não, mais ou menos sedimentados em trajectos históricos ou realidades étnicas ou confissões religiosas ou conveniências políticas e geo-estratégicas, conforme os casos. A guerra dos sexos e das raças, o fascismo de costumes e convicções,  a inédita ideia de que os estados devem abdicar das suas fronteiras, como a tentativa de aniquilar económica e culturalmente a civilização ocidental, não ganha adeptos em todo o lado e há vastos perímetros do velho continente em que não ganha adeptos nenhuns, como é bem visível no recente episódio da estátua LGBT que foi erigida em Budapeste e que não resistiu 24 horas à ira (ou ao bom senso?) dos Húngaros.

Na Rússia e na Polónia os estados travam neste momento uma batalha legal contra as big tech americanas, com base no sólido pressuposto que estas empresas não podem violar as leis vigentes nestes países no que diz respeito à liberdade de expressão. O limite dos direitos e das liberdades de um Polaco está na lei polaca e não nas duvidosas políticas de moderação e interdições ao livre discurso do Facebook ou do Youtube. É preciso dizer isto?

No que diz respeito à relação com o Império do Meio, parece que americanos e europeus tendem também em divergir. Enquanto Beijing Biden não faz mais que servir os interesses chineses e ser humilhado pelo Comité Central, a União Europeia em geral e algumas das diplomacias nacionais em particular iniciaram no último ano - e bem - um processo de combate ao imperialismo sino-maoista, que se trava tanto na frente económica como na frente diplomática. Este surpreendente ressurgimento dos testículos europeus pode ter sido espoletado pela gestão manhosa que a China fez da pandemia, mas os ingredientes já ferviam na panela de pressão das relações internacionais há uns tempos largos.

Em Portugal, por muito neolítico que seja o ambiente político, por muito incipiente que seja a intervenção cidadã, por muito podre que esteja esta república, por muito hegemónica que seja a esquerda em todos os poderes instituídos, até o Bloco parece um partido conservador quando comparado com o Partido Democrata americano e nem é preciso dizer mais nada. 

É claro que os europeus continuam a ser fascizados pela União Europeia e é claro que a União Europeia é uma enjoativa máquina apparatchik, politicamente correcta até aos cabelos, deficitária de legitimidade e transparência, infestada por tiques marxistas e manias autoritárias. É claro que vivemos sobre a égide da insuportável Angela Merkel, triste e frígida burocrata alemã sem virtude nem visão, que teima em não enxergar as consequências das suas miseráveis e suicidárias políticas sociais, mas, muito sinceramente, no ponto em que estão as coisas do outro lado do Atlântico, ou para lá do Canal da Mancha, estou muito contente por viver aqui, neste canto insignificante, mas razoavelmente pacífico, razoavelmente sensato, da Europa.

Até ver.