Muito de vez em quando, de entre as toneladas de lixo que a Netflix produz e impinge, encontramos uma pérola. Foi o que me aconteceu ontem. Tinha-me atirado para o sofá na convicção de que ia ganhar sono para ir para a cama com um subproduto televisivo qualquer. Estava enganado porque reparei de repente num filme indiano cujo produtor executivo era Alfonso Cuarón (o realizador do maravilhoso "Roma", de 2018). "The Disciple" centra-se no trajecto de um vocalista de música clássica indiana, ou hindustani, e na sua busca pela perfeição técnica, criativa e espiritual, que neste género musical vai dar no mesmo.
Depois de uma pesquisa que fiz para escrever este post, posso informar que o hindustani é a variante de música clássica indiana do norte do subcontinente e encontra as suas raízes na literatura védica do hinduísmo, no Natya Shastra, o texto sânscrito clássico sobre as artes cénicas, escrito por Bharata Muni e no texto sânscrito do século XIII, Sangita-Ratnakara, escrito por Sarangadeva. Ao contrário do que a nomenclatura pode indicar ao leitor ocidental, trata-se mais de música ritual do que erudita e vive sobretudo da voz, sendo acompanhada por um palco sonoro minimal e repetitivo, produzido por instrumentos tradicionais de cordas e percussão.
Na leiga opinião do meu ouvido, porém, trata-se de um género bastante exótico que podemos localizar topograficamente entre o folclore tuaregue, a ópera chinesa e o jazz norte-americano. Mas adiante.
O filme, realizado por Chaitanya Tamhane, é um manifesto estético e filosófico como poucos se têm feito neste século. O ambiente cénico é marcado por planos abertos, gloriosos, cuidadosamente desenhados, que respiram um qualquer e abundante oxigénio mágico, encantatório para o olhar e alucinatório para a alma.
Os planos exteriores, rasgados até ao limite da percepção, longos até à delícia da sensibilidade, hipnóticos no seu movimento tântrico, são belos de fazer cair o queixo, mesmo quando retratam um ambiente urbano que oscila entre o realismo decadente e o maneirismo futurista.
O dedo de Cuarón não é concerteza alheio a esta monumentalidade cinematográfica, nem à forma pausada, muda e meio enigmática de contar a história. A fita está carregada de semântica nas entrelinhas e há pequenos gestos que pesam para além da gravidade. Silêncios que gritam. Sombras que revelam.
Embrulhado neste assombro gráfico e sintático, corre o argumento que é eminentemente Proustiano. O filme consubstancia-se numa odisseia do tempo que é perdido em busca da perfeição inalcançável. A dedicação do discípulo, a abnegação do aprendiz, a fidelidade do ingénuo vai, suspeita bem o espectador, contra a sua própria capacidade vocal tanto como contra a dúbia virtude dos seus mestres. A perseverança estoica do indivíduo que choca declaradamente contra o mundo material e as conveniências sociais e o bom senso da razão prática das coisas, acabará, passadas as necessárias décadas de perseguição idealista, na inevitável queda sobre a dura superfície da realidade. Há quem atinja o nirvana do sucesso e do reconhecimento artístico, sim. Mas esse olímpico prémio fica do lado dos outros. Fica cruelmente longe do eu e do agora. Sempre.
Mas essa perseguição dolorosa e prolongada não é vã, como parece, porque não deixa de ser redentora, quase ao ponto de permitir um final feliz, se é que podemos considerar a felicidade como um elemento de permanência e validade ontológica. Se é que podemos considerar que a felicidade é um objectivo legítimo da condição humana. Porque às vezes - ou quase sempre - são os fracassos e as misérias, mais que os raros triunfos, mais que as escassas glórias, os motores do destino que na verdade nos serve perfeitamente.
Não consegui encontrar a última sequência, que é a forma mais bonita de acabar um filme que me lembro de alguma vez ter visto. Que pena, porque queria mesmo partilhar isso contigo, gentil leitor. Assim sendo fica uma outra sequência que também faz justiça a esta obra prima.
"The Disciple", na Netflix. Um filme absolutamente belo. Absolutamente consolador.