Comecei agora, mas a escassa leitura já serve umas linhas, breves, de reflexão. Outras se seguirão, na consequência da profundidade da queda.
É no mínimo estranho que entre quatro biografias de Fernando Pessoa, três sejam escritas por estrangeiros. É no mínimo estranho que um americano sem grande, nem pequeno, currículo académico, que chegou a Portugal a propósito de uma bolsa de estudo sobre o cancioneiro medieval nativo, se tenha transformado, em menos de uma década, numa autoridade maluca sobre a vida e a obra do maior poeta de todos os tempos. É no mínimo estranho o acesso, desprovido de qualquer tipo de passaporte em erudição ou obra publicada, que lhe foi proporcionado à interminável e mítica arca.
É verdade que Zenith tem como competidores apenas João Gaspar Simões, que por ter sido contemporâneo e editor do poeta escreveu uma reportagem mais que uma biografia, e Robert Brechon, o francês que, sem o acesso VIP que Zenith teve, nem o protagonismo mediático e injustificado deste enigmático personagem, conseguiu ainda assim a mais competente e inspirada biografia de Fernando Pessoa até aqui redigida.
A miserável gesta de Cavalcanti é para esquecer, claro. Limitou-se a insultar a memória do autor da Ode Triunfal, muito simplesmente porque nenhum brasileiro poderá alguma vez enaltecer a obra de um português, mesmo que o português em causa seja o maior poeta de todos os tempos.
A obra de Zenith, avaliando-a de forma inócua pelo número de páginas e pelo corpo de letra, parece ambiciosa. Pelo que já li, e creditando a competência da tradução, o rapaz sabe escrever inglês. A ter uma biografia de referência, Fernando Pessoa (cuja ideia de ser biografado não lhe era muito simpática), provavelmente preferiria que fosse escrita na língua de Shakespeare. É verdade.
Mas Zenith nunca será para além de um americano. Ainda por cima um intelectual americano (uma contradição em termos). Ainda por cima um intelectual americano que, não fora esta biografia, seria, para todos os efeitos, anónimo.
O carácter universal, poli-linguístico e meta-semântico da obra de Fernando Pessoa implica a intrusão académica de estrangeiros, obviamente. Se fossemos visitados por alienígenas, de certeza que os seus adidos culturais iam logo agenciar o Livro do Desassossego junto das mais prestigiadas editoras da galáxia, comercializar a poesia completa de Alberto Caeiro nas livrarias de todos os sistemas solares civilizados e encontrar um espaço privilegiado para os versos de Álvaro de Campos nas bibliotecas de Alexandria que ainda não arderam, na imensa geografia cósmica.
Mas chateia-me um bocado, confesso e talvez sendo vítima do mais básico e saloio snobismo patriótico, que um americano cujo mérito é o de ter apenas decidido ser biógrafo do maior poeta de todos os tempos, se apresente, perante a concórdia geral, como o biógrafo de referência do maior poeta de todos os tempos.
Logo no primeiro capítulo, Zenith descreve Lisboa lindamente, verdade, mas como um cámone. A prosa é competente e, até, elevada, mas não deixa de ser exterior, estrangeira, desligada do que os lisboetas pensam da cidade, principalmente os lisboetas de princípio do Seculo XX e principalmente o lisboeta retornado, alienado, introvertido, esquisito, tuga até à medula, que, no caso, está a ser biografado.
Pela entrevista que deu ao Público, facilitada pelo normal serviço de sexo oral que a imprensa oferece às estrelas do seu firmamento, Richard Zenith anuncia que a biografia de que é autor não oferece ao leitor uma tese de fundo sobre o maior poeta de todos os tempos. Esta humildade é de enaltecer. Mas o problema é que logo a seguir tenta convencer a pacificada audiência de que Fernando Pessoa não nasceu genial, mas que se fez genial.
Portanto, o autor da Mensagem, não tendo nascido com o talento suficiente para escrever a Mensagem, decidiu que o devia ter e acabou por tê-lo.
Esta ideia de que pessoas normais se transformam em génios por iniciativa própria é, para manter alguma cordialidade, abstrusa. Mais que abstrusa, na verdade, quando o génio em causa é o maior poeta de todos os tempos.
São primeiras impressões, só. Se calhar estou a ser injusto. A ler vamos.