quarta-feira, maio 03, 2023

Haikus de Fornalhas Velhas (II)

Fornalhas Velhas.
Deve ter sido aqui que Adão
Trincou a maçã.


À meia noite vou à padaria.
O pão permanece quente
Até de madrugada.


O pão de Fornalhas Velhas
É uma espécie
De pecado original.

 

Batem-me à porta por uma travessa de arroz doce.
O gesto é mais doce
Que o arroz.


Sou sempre o último a ir para a cama.
Junkie de ser
Sozinho. 


A arte do haiku podia muito bem
Ter tido génese
Aqui.


Gosto da escuridão:
É nessa geografia de sombras que identifico
O Diabo.


Ainda não tenho absoluta certeza de que Deus
Existe. Mas desconfio bem
Que sim.


Quatro velas
É luz
A mais.

 

Não há companhia
Como aquela que a família
Faz.


Gosto da minha sobrinha, geneticamente antípoda,
Como se o meu sangue circulasse
Nas veias dela.


O gato Álvaro está em Fornalhas
Como Dante
No paraíso.


O whisky foi pensado por um escocês
Para ser bebido no calor da noite
Por um alentejano.


Os haikus são como os tremoços;
Quando começas
Não sabes parar.

 

Os meus haikus são todos manuscritos com uma Parker.
Sou eu o poeta ou é
A caneta?


O robalo que hoje grelhei
Não passava vergonha
À mesa de um rei.

 

Há uma verdade absoluta no silêncio.
Seja ela
Qual for.


Já não tenho a capacidade de trabalho que tive um dia,
Mas ainda sou mais formiga
Que cigarra.


Pátio dos 8:
Passo dez dias dentro do sonho
De um amigo.


Tão pacífico este pátio
Que até as vespas
Recolhem o ferrão.


Salvo uma família de escaravelhos
Da morte afogada no tanque.
Não é dizer pouco.


Enquanto houver whisky
Vão correr
Os versos.


A abóboda celeste,
Por distante que seja só te aproxima
De Deus.


Oiço aviões que passam a 30.000 pés.
O silêncio é um
Amplificador.


A vida é sofrimento
Com sublimes
Parentesis.


O meu último desejo vai ser
Um cigarro.


Dou-te um abraço, amigo, e
Aqui entre nós,
O Alentejo.

 

A caneta está a ficar
Sem tinta:
Último haiku.