sexta-feira, outubro 28, 2005
“Escrevi a abertura da Gazza Ladra na véspera da noite de estreia, num sotão do Scala, onde fui fechado pelo director. Seja a presença do copista que espera ansioso pelo trabalho ou o choramingar do empresário que puxa pelos cabelos, nada potencia a inspiração como a necessidade. No meu tempo, todos os empresários de Itália chegavam carecas aos trinta anos.”
GIOACHINO ROSSINI, o mais conhecido e popular compositor da transição entre os séculos XVIII e o XIX - e entre o iluminismo e o romantismo - está hoje reduzido à categoria de autor menor. Ouve-se pouco, fala-se pouco dele, é ausente nas colectâneas para as massas e persona non grata nas recenssões dos eruditos.
Tratando-se este lamentável facto de uma injustiça de séria gravidade epistemológica, não deixa de ser fácil de entender. O triunfo da escolástica germânica sobre a arte da ópera, que se iniciou fundamentalmente com a Flauta Mágica de Mozart, e ao qual o próprio Rossini assistiu, como contemporâneo de Beethoven e Wagner; e sobretudo a sua condição de performer de massas (a ópera não era um discurso de elites na Itália oitocentista), retiraram-lhe o devido quinhão na aritmética da eternidade.
A história da música dita Clássica é feita por Paleontólogos do Contraponto, arqueólogos da Harmonia e antropólogos do Dó Menor. Gente, enfim, que não consegue compreender a importância da música como alimento espiritual dos povos nem quer saber da força vital que flui no mainstream sócio-cultural da história. Para estas borolentas baratas de biblioteca, que vão ao Fidelio de cartola e cerimónias - solenes como quem nem gosta de música - é inimaginável a plateia de uma representação de La Pietra del Partagone, que vibra de sapateiros e chulos aos pulos, de prostitutas e proscritos aos gritos, de bêbados e bandidos aos gemidos, de gargalhadas e pateadas, de aplausos mal criados e assobios a fervilhar. Rossini não escrevia música para os deuses, nem para os reis, nem para os filósofos. Não estava preocupado com os caprichos dos príncipes nem com os gostos das cortes. Sabendo bem da alegria da música, o grande mestre da Ópera Buffa propunha intensidade, ritmo, eloquência e entretenimento, para todos.
Não que lhe faltassem os argumentos dos predestinados, não que lhe pulsasse fraca a veia dos virtuosos. Rossini produzia música orquestral prodigiosa a um ritmo desenfreado: a partitura do Barbeiro de Sevilha saiu-lhe em 15 dias e, entre 1815 e 1823, o Mestre escreveu 20 das 40 óperas que compôs durante a sua vida, a maior parte das quais verdadeiras obras primordais do talento humano e, quase todas, escritas a bordo de uma carruagem, num quarto de hotel ou sobre a mesa de uma estalagem. Herdando a vocação cosmopolita dos seus pais, Rossini desmultiplicou-se em viagens, concertos e encomendas por toda a Europa, procurando conhecer pessoalmente todos os que admirava, dirigir todas as orquestras de renome, estrear em todas as salas míticas, levar a sua música a todos os que a soubessem apreciar.
Vítima frequente da má-língua, Rossini é acusado de plágios e repetições, fórmulas e pastiches, truques e tiques. Na verdade, não era raro transferir áreas e catavinas de uma ópera para outra. Mas, senhores, como é que julgam que foi possível a Bach compor uma cantata por semana, nos velhos e atarefados tempos de Leipzig?
E que raio fazia Haendel, quando lhe faltava o tempo para cumprir com as solicitações da freguesia?
(Seja como for, nem toda a gente tem que ser deus como Mozart, que escrevia ópera italiana dentro dos canônes italianos e ópera alemã dentro dos canônes alemães, sem repetir uma oitava).
Conta-se que, apresentado por Salieri a Beethoven - de quem era grande admirador - este o recebeu com alguma frieza, congratulando-o pelo Barbeiro de Sevilha mas recomendando-lhe que não criasse Ópera Séria, para a qual os italianos, por condição, não tinham qualquer talento.
Humildemente, Rossini assentiu, agradeceu o conselho e, de uma forma geral, até o seguiu. Mas para mim, porém, La Gazza Ladra continua a ser uma obra bem mais inspirada, e de conteúdo onírico bem mais feliz, que qualquer uma das severas e punitivas partituras de todos os Wagners que andam para aí há que tempos a castigar a sensibilidade ocidental.
domingo, outubro 23, 2005
Carreira Neves no Expresso
Agora que sabemos que o chato do arquitecto se vai embora (em boa hora) para ser substituído por Henrique Monteiro (uma boa notícia), talvez seja possível voltar a ter um semanário decente neste país. Por enquanto, a única coisa realmente digna que encontramos na sacola imensa que nos entregam quando apenas queremos comprar um jornal, é o suplemento Actual. Esta semana o trabalho dedicado ao terramoto de Lisboa é competentíssimo em forma gráfica e conteúdo substantivo. Há 15 dias, as peças sobre a integração ou exclusão da Turquia na Comunidade Europeia e a vida de Hugo Pratt são de aplaudir; mas, o melhor mesmo, foi a entrevista da semana passada com o Padre Carreira das Neves, um reputado biblista e homem notável, cujo brilhantismo, clarividência teológica e coragem missionária vão fazer muita falta à igreja e à Universidade Católica, onde leccionou durante décadas e de que agora se retira. Entre não sei quantas afirmações de grande valentia moral e génio académico, deixo aqui aquelas que me pareceram mais poderosas.
Sobre o Genesis: "A descrição da construção do Céu e da Terra nada tem a ver com a verdade histórica."
Sobre o pecado original : "Nenhuma mãe dá à luz uma criança em estado de pecado."
Sobre Moisés e o Êxodo: "Se realmente o Êxodo tivesse tanta importância como a Bíblia manifesta, com certeza que os faraós, que conservavam anais e escreviam nos templos, algum registo haveriam de ter deixado. Ora, não aparece nada, nenhuma pedra, nenhum escrito sobre Moisés."
Sobre a infância de Cristo: "Os relatos de infância de Jesus, desde o lugar onde nasceu à matança dos inocentes e mesmo a fuga para o Egipto não são história factual. São construções eclesiais funcionais."
Sobre a virgindade de Maria: Interessa perguntar porque é que os judeus na diáspora traduziram Almah - palavra hebraica que significa jovem - para parthenos - palavra grega que designa donzela virgem."
Sobre os milagres de Cristo: "Quando se refere a multiplicação dos pães e dos peixes, estamos de facto a falar de milagres eclesiais. Este relato está relacionado com a acção da eucaristia. Na eucaristia, todos devem comer. Este milagre não foi um acontecimento com varinha mágica, com Jesus a dizer: Venha mais uma fornada de pães. Tem de ser examinado e de ser visto numa perspectiva messiânica."
Sobre a Ressurreição de Cristo: "Nunca Jesus ressuscitado falou com as pessoas ou partilhou refeições com elas."
Sobre a origem dos testamentos: "A bíblia não caiu do céu."
Sobre o Genesis: "A descrição da construção do Céu e da Terra nada tem a ver com a verdade histórica."
Sobre o pecado original : "Nenhuma mãe dá à luz uma criança em estado de pecado."
Sobre Moisés e o Êxodo: "Se realmente o Êxodo tivesse tanta importância como a Bíblia manifesta, com certeza que os faraós, que conservavam anais e escreviam nos templos, algum registo haveriam de ter deixado. Ora, não aparece nada, nenhuma pedra, nenhum escrito sobre Moisés."
Sobre a infância de Cristo: "Os relatos de infância de Jesus, desde o lugar onde nasceu à matança dos inocentes e mesmo a fuga para o Egipto não são história factual. São construções eclesiais funcionais."
Sobre a virgindade de Maria: Interessa perguntar porque é que os judeus na diáspora traduziram Almah - palavra hebraica que significa jovem - para parthenos - palavra grega que designa donzela virgem."
Sobre os milagres de Cristo: "Quando se refere a multiplicação dos pães e dos peixes, estamos de facto a falar de milagres eclesiais. Este relato está relacionado com a acção da eucaristia. Na eucaristia, todos devem comer. Este milagre não foi um acontecimento com varinha mágica, com Jesus a dizer: Venha mais uma fornada de pães. Tem de ser examinado e de ser visto numa perspectiva messiânica."
Sobre a Ressurreição de Cristo: "Nunca Jesus ressuscitado falou com as pessoas ou partilhou refeições com elas."
Sobre a origem dos testamentos: "A bíblia não caiu do céu."
Uma descoberta.
Descobri Gerrit Komrij ao acaso, na Bertrand do Chiado. Num dos escaparates, a caveira que a Assírio escolheu para a capa de "Contrabando" chamava por mim. Abri o livro e li:
"Subiu-te do peito um Excelso suspiro.
Eram-te as costelas aros cromados.
Ciclista-poeta, fugias à frente
De um milhão de belgas desenfreados."
Andei a tarde toda com o livro na mão, encantado com o escrevinhar insólito deste holandês inspirado e satírico, que me diverte e que me assusta. É muito bom, descobrir poesia assim. Sem receitas de crítico nem conselhos de amigo. Só com a ajuda de uma livraria onde uma pessoa pode de facto conviver com os livros.
"Subiu-te do peito um Excelso suspiro.
Eram-te as costelas aros cromados.
Ciclista-poeta, fugias à frente
De um milhão de belgas desenfreados."
Andei a tarde toda com o livro na mão, encantado com o escrevinhar insólito deste holandês inspirado e satírico, que me diverte e que me assusta. É muito bom, descobrir poesia assim. Sem receitas de crítico nem conselhos de amigo. Só com a ajuda de uma livraria onde uma pessoa pode de facto conviver com os livros.
quinta-feira, outubro 20, 2005
Em cima, a primeira representação dos pelos púbicos da mulher na história da arte ocidental. Em baixo, uma réplica decente que Goya foi obrigado a executar, perante o escândalo que causou a nudez da senhora amante do Duque de Alcudia, que tinha encomendado o retrato ao Mestre, e que de pronto o recusou.
Muito sofreu Goya por causa da "Maia Nua". 15 anos depois de a ter concluído é chamado ao tribunal da Santa Inquisição para responder pela heresia e, por ela, perder o seu muito querido lugar de pintor da Corte espanhola.
A imortalidade sai sempre muito cara.
segunda-feira, outubro 17, 2005
quinta-feira, outubro 13, 2005
O Prémio Nobel da Falta de Vergonha
A atribuição do Prémio Nobel da Paz a Mohammed ElBaradei e à sua Agência Internacional de Energia Atómica é um daqueles gestos completamente abstrusos do Comité Nobel Norueguês (este prémio não é atribuído pelos suecos mas os noruegueses fazem o favor de se manterem coerentes com a tradicional imbecilidade dos seus vizinhos), que só vem comprovar a total degradação moral, filosófica e política da Instituição.
Aparentemente, os vencedores foram distinguidos pelos "esforços para impedir que energia nuclear seja usada para fins militares e garantir que a destinada a fins pacíficos seja usada da maneira mais segura possível". Ora, deixem-me recordar que passaram apenas dois anos desde que esta deplorável criatura agora laureada, em discurso ao Conselho de Segurança da ONU, insistia que o programa nuclear do Irão se destinava exclusivamente à produção de energia para consumo doméstico e industrial... Nessa altura escrevi eu no Ocidental Praia:
Mohamed ElBaradei e a sua hilariante Agência Internacional da Energia Atómica ainda acreditam que as instalações nucleares iranianas estão a ser desenvolvidas com um fim pacífico. A ingenuidade ou cumplicidade deste senhor não tem paralelo: O Irão, riqíssimo em petróleo e em carvão, não precisa de criar formas subsidiárias e comparativamente dispendiosas para acender a luz e é evidente que o regime iraniano - um dos mais perigosos, ferozes, fanáticos e totalitários do mapa político - pretende apenas aumentar a pressão nuclear sobre o Médio Oriente.
Hoje, que já toda a gente sabe ao que é que vem o programa nuclear iraniano, premeia-se este árabe tendencioso e inconsciente não por qualquer mérito ligado às suas competências (obviamente nulas), mas sobretudo porque chateou imenso os americanos a propósito das desaparecidas armas de destruição maciça no Iraque.
O problema da proliferação das armas nucleares é aliás de uma bizarria monstruosa. Certos países como a Coreia do Norte e o Irão e outros que tais, limitam-se a iniciar os seus programas pseudo-apocalípticos como forma de obterem posteriormente, como contrapartida da destruição desses programas, ajudas financeiras internacionais e benefícios comerciais.Tudo com a descarada conivência da infeliz agência dirigida por ElBaradei, que devia estar preso numa gruta qualquer de Guantanamo.
Hoje em dia, ser premiado Nobel - em letras ou em políticas - não é uma honra. É uma vergonha.
Sim, estas duas obras foram pintadas pelo mesmo génio. Francisco Goya (1746/1828) foi um muito bem sucedido retratista de reis e cronista de cortes - e assim viveu grande parte da sua vida - até que a doença, a traição e o desespero lhe estragaram o olho idílico.
Depois de experimentar os horrores da Guerra da Península, de ser perseguido pelas obsessões e delírios de Fernando VII e da Santa Inquisição e de ficar progressivamente insano, cego e surdo - envenenado pelos pigmentos das tintas que usava - Francisco Goya enclausurou-se e começou a pintar a sério.
E, sendo um dos grandes pioneiros do aborrecido, bucólico e ingénuo Romantismo Europeu, Francisco Goya soube enlouquecer um bocado e viver o suficiente para inventar o Expressionismo.
sexta-feira, outubro 07, 2005
Do discurso eleitoral.
Portugal deve ser o único país no mundo em que o marketing político teima em regredir de qualidade. E nem vale a pena falar dos casos óbvios, que poluem despudoradamente os cenários urbanos, quando crescem como cogumelos algumas verdadeiras pérolas da comunicação ideológica nos mais escondidos lugares da nação profunda. No lugar de Carne Assada (sim, Carne Assada, concelho de Mafra) está plantado um outdoor que diz assim: "A FREGUESIA AOS FREGUESES". Deuses da República, digam-me, a democracia é isto?
quinta-feira, outubro 06, 2005
O Relatório Kinsey não é o Diário de Bridget Jones.
Eis o estado a que as coisas chegaram: na Áustria; um País tão politicamente correcto - ou tão reaccionário, não percebo bem - que até tem um Ministério dos Assuntos Femininos; o hino nacional vai ser corrigido de forma a não ofender a condição da Mulher. Assim, onde antes se cantava “coros irmãos”, cantar-se-á “coros alegres”; o verso que elevava os “grandiosos filhos da Nação” passará a elevar os “grandiosos filhos e filhas da Nação” e a palavra pátria (Vaterland), porque dá ênfase ao conceito patriarcal da república, será substituída por “Terra Lar”.
É claro que ninguém torna a vida mais fácil à difícil vida da mulher ocidental com este tipo de ridicularias. Nenhuma mulher inteligente pode achar que estes artigos de barata cosmética lhe devolvem a dignidade perdida, se é que ela acha que perdeu alguma.
Tais símbolismos abstrusos de baixa política, pelo contrário, rebaixam a condição da mulher, simplesmente porque conduzir o assunto da condição feminina como se de uma minoria étnica se tratasse, é de uma vilania inominável.
Em vez da discriminação positiva, da gramática revisionista e do moralismo abjecto e arcaico das comunas de Paris, o que se deve dar às mulheres, são direitos e oportunidades iguais. Ponto final. Tudo o mais é lamechice insuportável, ou pior ainda, tudo o mais é querer tranformá-las. É querer alterar a sua antropologia. Tudo o mais é que é ser paternalista, fascizóide, segregacionista. Tudo o mais é não perceber coisa nenhuma de biologia, é não saber aceitar que homem e mulher cumprem papeis diferentes no quadro da mecânica natural da sua espécie. É não conseguir compreender que o Homo Sapiens é um produto relativamente bem sucedido dessas diferenças simbióticas, dessa multiplicidade diversa, que também é responsável pelo género que têm as palavras, tanto como pela ordem semântica da linguagem. Tudo o mais é querer transformar mulheres em homens.
A Eva dos nossos dias - chamemos-lhe Bridget Jones - é o paradigma da mulher em falência de missão ontológica que a escolástica socialistóide dos estados europeus tem parido a torto e a direito. É uma tonta que não percebe qual o seu papel no enredo: a biologia diz-lhe uma coisa, as aspirações de animal moderno exigem outra. Sexualmente esquizofrénica, não sabe se deve seduzir ou ser seduzida, entregar-se ao casamento ou abandonar-se à luxúria, assumir-se predadora ou entregar-se presa fácil. Operacionalmente inepta, não sabe se há-de cozinhar ou sair em reportagem, seguir carreira ou construir família. É a confusão e a falta de senso, é a neura e a deselegância crónica. É o caos e o divórcio.
Desde a revolução sexual do século XX que a mulher ocidental anda metida numa batalha contra si própria, e tudo por causa de quem a quer salvar do seu destino trágico, não se percebendo bem que tragédia maluca aguarda Bridget, sabendo-se que é ela, em última análise, a fiel depositária do mistério da vida.
Curiosamente, o grande pioneiro desta revolução, sabia bem demais que as diferenças entre géneros na espécie humana eram não só evidentes como elementos causais da civilização. Quando Alfred Kinsey lançou em 1946 "O Comportamento Sexual do Homem" e depois, em 52, "O Comportamento Sexual da Mulher", produtos do primeiro estudo científico alguma vez realizado sobre a sexualidade humana, a dicotomia estava assumida.
Neste sentido, o Diário de Bridget Jones só é inspirado no Relatório de Kinsey por equívoco do argumentista.
Maravilhado desde sempre com a diversidade do reino biológico, naturalista fanático e metodologista radical, Kinsey acreditava que o comportamento sexual da espécie humana seria consistente com as idiossincrasias do indivíduo e do seu meio envolvente. E que toda a actividade sexual, da masturbação ao coito com animais, da homossexualidade aos sonhos húmidos, decorreria de um impulso natural, entendido como uma manifestação individual de cada ser vivo, em função do seu determinado contexto existencial.
Estudando, registando e catalogando uma imensidão estatística de depoimentos anónimos com base nas divergências morfológicas, sensoriais e culturais dos entrevistados, Kinsey propôs uma abordagem baseada não na uniformidade, mas antes num padrão multiforme de comportamentos, também sustentados pelas particularidades decorrentes do Género.
Lamentavelmente, o estudo foi entendido precisamente como um elo de convergência comportamental - e portanto “de natureza” - entre homens e mulheres, os desvios ao regime puritano foram colados na mesma caderneta unisexo do senso comum e daí o caudal de dislates politico-filosóficos que se seguiram.
Não por acaso, o segundo volume do estudo de Alfred “Prok” Kinsey foi a sua desgraça: a sociedade americana, que o tinha aclamado por trazer à consciência social a terrível verdade sobre o líbido masculino, não o perdoou por escarrapachar nos escaparates os segredos de alcova das mulheres americanas. O espírito proteccionista de ontem e de hoje é o mesmo e as mesmas bestas que não percebem as diferenças agora, também não as entendiam há 50 anos atrás.
Assim, Bridget, que não se soube decidir entre o soutien chamuscado e a cinta de ligas, vai sempre parecer uma coelhinha da playboy numa missa luterana. E enquanto entoa a canção pátria que já não é pátria, que é orfâ de pais para que não lhe ofendam a dignidade de plástico que comprou nas televendas dos editoriais e dos projectos-lei, Bridget Jones vai perdendo irremediavelmente a sua identidade de fêmea, de mamífero e de sapiens.
Voando Sobre um Ninho de Corvos
(Original de 1993 em cinco posts)
POST QUINTO
Lembro-me bem da vida lá fora. Lembro-me dos semáforos e dos centros comerciais, lembro-me das bocas de incêndio e das estações de metropolitano. Recordo-me bem da pressa com que se movimentam as gentes da cidade, agitando-se febris na expectativa do naufrágio.
Abandonei a vida lá fora porque sempre me cheiraram as ruas a morte. Foi exactamente por isso que me acolheram aqui, solícitos como comerciantes marroquinos, neste convento do silêncio e do espanto endémico. Cheiram-me as ruas a morte, doutor. A pássaro mortos. Na baixa é um cheirete insuportável a corvos putrefactos, o doutor sabe lá. E nas avenidas novas, parece que lá vão a morrer as gaivotas. Eu já não aguento mais a pestilência. Até em Alvalade, é um pivete a pombos em decomposição que tira o apetite a um homem que não come há três dias, doutor, verdade, verdadinha como eu estar a aqui a falar consigo.
Abandonei a vida lá fora porque o cheiro a morte não entra aqui dentro da gaiola. E mais a mais, sempre me deixam voar do trapézio para o refeitório (não me falta a alpista), do refeitório para a farmácia (não há escassez de barbitúricos) e da farmácia para a sala da televisão (não há falência de erotismo durante o telejornal). Voar até à sala da televisão é ser mais livre que um náufrago chapinhando a meio caminho entre dois oceanos.
Hoje, faz dez anos que aqui estou. E não tenho saudades nenhumas da vida lá fora. Talvez porque me lembre tão bem de ter que pagar a renda e fazer a barba. Talvez porque ainda sobrevivam nas narinas da memória, esses aromas da morte alada que sujam as ruas do Bairro Alto.
terça-feira, outubro 04, 2005
A propaganda do medo.
Feitas as tristes contas, o Furacão Katrina provocou 1033 mortos, contando os desaparecidos.
Então porquê a loucura dos 10.000 mortos projectados pela imprensa? É legítimo vender notícias assim?
É digno inventar vítimas para servir interesses? É aceitável agravar artificialmente as catástrofes por razões de ordem política e económica?
Cada dia que passa, os meios de comunicação social assumem com maior fanatismo a sua missão de instalar o medo, porque é o pânico global que faz o mundo rodar. E não há quem saiba ou possa contrariar esta perversa mania dos últimos dias que se instalou nas redacções, nos gabinetes editoriais e nos conselhos de administração. Toda a gente sonha com a manchete que traga a notícia do Fim e quanto maior a tragédia, mais profética a ficção.
A construção romanesca de ameaças biológicas e climátéricas, a transformação dos palcos de guerra em cenografias multimediáticas, a difusão de mitos apocalíticos, tudo serve para vender mais pomada para os calos da existência.
Os efeitos psico-sociais desta terrível tendência são devastadores. As pessoas vivem hoje sobrecarregadas com o fardo dos horrores do mundo e dos medos ciclópicos que trazem consigo e um suicídio em Sidney, um assalto em Los Angeles, um surto de Malária em Angola ou uma bomba em Bali bastam para preencher essa falsa expectativa da condenação eterna.
Para quando um poder que responsabilize este (quarto-primeiro) poder?
Então porquê a loucura dos 10.000 mortos projectados pela imprensa? É legítimo vender notícias assim?
É digno inventar vítimas para servir interesses? É aceitável agravar artificialmente as catástrofes por razões de ordem política e económica?
Cada dia que passa, os meios de comunicação social assumem com maior fanatismo a sua missão de instalar o medo, porque é o pânico global que faz o mundo rodar. E não há quem saiba ou possa contrariar esta perversa mania dos últimos dias que se instalou nas redacções, nos gabinetes editoriais e nos conselhos de administração. Toda a gente sonha com a manchete que traga a notícia do Fim e quanto maior a tragédia, mais profética a ficção.
A construção romanesca de ameaças biológicas e climátéricas, a transformação dos palcos de guerra em cenografias multimediáticas, a difusão de mitos apocalíticos, tudo serve para vender mais pomada para os calos da existência.
Os efeitos psico-sociais desta terrível tendência são devastadores. As pessoas vivem hoje sobrecarregadas com o fardo dos horrores do mundo e dos medos ciclópicos que trazem consigo e um suicídio em Sidney, um assalto em Los Angeles, um surto de Malária em Angola ou uma bomba em Bali bastam para preencher essa falsa expectativa da condenação eterna.
Para quando um poder que responsabilize este (quarto-primeiro) poder?
segunda-feira, outubro 03, 2005
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