terça-feira, julho 31, 2012

O gengibre agridoce plantado na esquina do tempo


POR MIKE BRAMBLE 


A capa, de uma beleza nostálgica e de uma oriental serenidade, não deixa de nos fazer soar uns alarmes pelos dizeres inscritos. “Um milhão de exemplares vendidos”, apregoam. O excerto da recensão apenso também não nos tranquiliza: “Um livro de que todos falarão e seguramente o melhor livro que lerá este ano”. Para mais, quando percebemos que foi lavrado no USA Today, não propriamente um dos templos da crítica literária.
Seguimos, porque se não se compram e leêm livros pelas capas, por maioria, também não se os deve abandonar por estas infelicidades. Debruçamo-nos sobre o título e o enigma visual do frontiscípio começa a cativar mais. “O Gosto Proibido do Gengibre”, autor Jamie Ford, bisneto de um imigrante de origem chinesa. Na versão brasileira, com a mesma capa, circula como “Um Hotel na Esquina do Tempo. Na versão original, de 2000, esta obra intitulou-se “Hotel on the Corner of Bitter and Sweet”.
É um exemplo raramente feliz de adaptação, para melhor, de um título para português. E as mais de 300 páginas que a edição da Porto Editora colocou em circulação desde Fevereiro deste ano não desmerecem o tempo que investimos na sua leitura, antes pelo contrário. Tradução atenta de Vasco Gato, acompanhada por uma revisão cuidada.
A história tem tanto de simples, como de sublime. Poesia em prosa. Tensão intimista. Retorno a um passado pouco conhecido, pouco ‘mediático’ da história dos Estados Unidos. Um fresco corajoso, sem pretensões panfletárias, das contradições recalcadas e xenofobias latentes de uma sociedade americana em plena II Guerra Mundial.
Na costa Leste, na Seattle do início dos anos 40 do século XX, cruzam-se nesta obra norte-americanos, brancos e negros. E os ‘amarelos’: os chineses, aliados; e os japoneses, ‘inimigos’. Não há guerra, mas há comportamento marcial em cada esquina, em cada bairro, em cada casa. E descriminação por cor, por língua e por raça. Choque de culturas e de civilizações. E a ironia de hoje, sete décadas decorridas, estar tudo virado do avesso, outra vez. O brinde suplementar que a paralaxe do tempo sempre devolve a quem está atento e tem memória.
E Jamie Ford tem isso tudo. E cria personagens de fibra, algumas delas com existência histórica, como uma das maiores glórias dos primórdios do ‘jazz’ da costa Leste dos Estados Unidos, Oscar Holden. E recria locais de encanto, que ainda hoje é possível visitar, como o Hotel Panama ou a Bud’s Jazz Records.
Numa cidade cercada pelo nevoeiro, pela humidade, pelas sirenes nas iminências dos ataques nipónicos. Uma Seattle que vai submergindo com a migração forçada de milhares de japoneses, aliás, americanos de segunda e terceira gerações, forçados a deslocar-se em massa das suas casas para construir os seus próprios campos de concentração no interior dos Estados Unidos, do Idaho ao Texas. Neste ambiente depressivo e repressivo, Jamie Ford engendra uma fortíssima história de amor e amizade, que termina em Nova Iorque, em 1986.
A voz ao autor: “esforcei-me ao máximo por recriar esta paisagem histórica, sem julgar as boas ou más intenções daqueles que na altura se viram envolvidos”. “A minha intenção não era criar uma peça de moralismo, onde a minha voz fosse a mais audível em palco, antes remeter para o sentido de justiça do leitor, acerca do bem e do mal, deixando que os factos falassem por si”, sublinha Jamie Ford.
Como leitor, agradeço. E palpita-me que devemos ter grande escritor para os próximos anos. A má consciência não tem deixado os americanos debater o papel do Estado e dos cidadãos ‘brancos’ em relação aos seus conterrâneos nipónicos durante os anos quentes da II Grande Guerra. Que não foi só no Pacífico ou na Europa…
Tal como em Portugal ainda estamos a gatinhar na reflexão que deve ser feita na literatura (e nas outras artes) sobre o que sucedeu na Guerra Colonial, na descolonização e no regresso dos ‘retornados’ à metrópole. E nos efeitos que essas ocorrências tiveram em nós como Nação.
Tanto para um caso, como para outro, permito-me deixar aqui duas sugestões de leitura. No primeiro, o notável “A neve caindo sobre os cedros”, de David Guterson, edição da Relógio d’Água. No segundo, o mais recente “O Retorno”, de Dulce Maria Cardoso, edição da Tinta da China.