Era uma vez um chanceler alemão, de sua graça Gerhard Schröder, que na passagem dos milénios deixou a Europa completamente dependente de uma conduta de gás alimentada e montada pela Rússia. Como prémio por esta magnífica façanha e depois de ter sido despedido pelo povo alemão, Gerhard ganhou, entre outros fantásticos prémios, um magnífico e chorudo emprego no conselho de administração da NordStream, a empresa de capitais conjuntos russos e alemães que detém a dita conduta e uma gorda avença como consultor da Gazprom, a energética russa que coloca o gás na conduta.
Tudo isto é comum e não escandaliza ninguém, já que parece ser aceite com alguma naturalidade que os detentores de cargos públicos e políticos desencantem, no fim dos seus mandatos, rentáveis empregos nas empresas com que lidaram e a quem fizeram favores enquanto exerciam esses cargos. Faz parte.
O problema é que a Europa, na sua União em geral e na sua desunião em particular, não gostou da herança deixada por Gerhard Schröder. A Europa preferia ter sido servida de gás por outras condutas, por outros produtores, que não aqueles ligados intimamente a uma potência tártara, liderada por um ex-agente da KGB, que pode fechar a torneira a seu bel prazer e quando menos se espera, deixando germânicos e balcânicos, latinos e anglosaxónicos, eslavos e celtas, gauleses e helvéticos com o rabo ao frio. A Europa preferia mil vezes depender energeticamente do médio oriente, região do planeta dividida por tribos e religiões, fascismos e militarismos, siderais níveis de corrupção e guerras constantes e que, sendo instável e sanguinolenta, não tem poder para oferecer relevantes ameaças à paz continental, à prosperidade dos povos ocidentais e ao fluxo estável e contínuo do precioso e gasoso recurso.
Vai daí a Europa, na sua união tanto como na sua desunião, optou por inaugurar uma política diplomática de duas caras. A cara para inglês ver, que condena abertamente as intervenções militares americanas no médio oriente (salvo raras excepções em que a quase unanimidade da comunidade internacional promove as costas quentes de toda a gente, como aconteceu por duas vezes com o Iraque). E a cara usada para as reuniões a portas fechadas e os canais diplomáticos interditos ao olho público, em que pressiona os sucessivos inquilinos da Casa Branca no sentido de destruir todo e qualquer regime antipático às suas pretensões energéticas que pontifique na vasta geografia que se estende dos cursos do Tigre e do Eufrates aos desertos da Península Arábica. Até 2016 a estratégia dual tinha resultado esplendidamente. Entre Clinton, Bush filho e Obama, venha o diabo para escolher quem foi o presidente que matou mais gente, que destruiu mais cidades, que bombardeou mais casamentos e baptizados naquela deprimente localidade planetária.
Exemplo máximo deste sucesso é a Síria. Perímetro territorial essencial para a montagem da conduta de gás que sirva a Europa e a liberte do jugo energético pós-bolchevique, o país, se podemos chamar um país a este conjunto de ruínas ensanguentadas e cemitérios improvisados, é liderado pelo feudo Al-Hassad há cerca de meio século e o actual ditador-monarca na presidência, Bashar o Exterminador, cuspiu na mão e apertou a outrossim cuspida de Putin, jurando aliança eterna entre as duas nações e de tal forma que impossibilite para sempre e até ao fim dos dias, que Alá o permita, a construção da tal conduta tão desejada pela união e pela desunião dos europeus. Em contrapartida, Putin prometeu erguer o seu colossal punho militar para eternizar o regime assassino dos Al Hassad, custe o que custar, venha quem vier e morram os que morrerem, que no caso são essencialmente os desgraçados, irrelevantes e atómicos constituintes do povo sírio.
Não é aliás por acaso que a actual Chanceler alemã mostra uma tão enorme vontade de receber a constante corrente de refugiados de lá provenientes: a culpa é um peso, às vezes insustentável.
Acontece que em 2016 as coisas mudaram radicalmente. Os americanos elegeram um tipo que nunca leu Tácito. Que nunca leu Kissinger. Que se estava a barimbar para os interesses unidos e desunidos da Europa porque tinha como mandato preocupar-se exclusivamente com os interesses dos americanos. E os americanos não têm na verdade qualquer interesse, seja ele económico, seja ele estratégico, seja ele lúdico, na Síria. Vai daí, cessaram (ou quase cessaram porque a terceira lei da termodinâmica é lixada) os bombardeamentos de casamentos e baptizados. Vai daí, a ordem executiva americana começou a manifestar até uma vontade inacreditável e imoral de fazer regressar as suas tropas de palcos onde os soldados pereciam aos milhares sem qualquer razão aparente que pudesse legitimar a mortandade. Este surpreendente volte face deixou a união e a desunião europeia em estado apoplético. De tal forma apoplético que nunca como durante os quatro longos anos em que Donald Trump habitou a alva vivenda de Washington foi um presidente americano assim odiado, vilipendiado, ostracizado, ridicularizado pela união e pela desunião dos europeus. A guerra é essencial à paz europeia. Principalmente quando os soldados que morrem não são europeus. Principalmente quando os civis que morrem não são europeus. Principalmente quando a Europa consegue permanecer inocente nas páginas dos jornais e nos compêndios de história.
Acontece que Jeová é grande, o poder das altas esferas ainda é maior e a democracia americana sofre de várias corruptelas técnicas, de tal forma que a séria possibilidade de um segundo e satânico mandato de Trump foi interrompida por volta das três da manhã da madrugada de 4 de Novembro último e colocado enfim um senil e demente personagem no seu lugar, perfeitinha testa de ferro para o conglomerado industrial e militar norte-americano, tanto como para a ambição geo-estratégica sediada em Bruxelas. Um mês depois de tomar posse, Joe Biden largou a rédea ao Pentágono e a Síria voltou ontem a ser bombardeada pelos magníficos e gloriosos e libertadores jactos americanos.
A versão oficial, completamente transcrita pelo sempre fiel à falsidade orgão propagandístico do Partido Democrata a que continuamos a chamar New York Times, é a de que os Estados Unidos pretendem atingir estruturas malévolas montadas no país pelo Irão, mas se pensarmos que a política da actual administração americana em relação às ambições nucleares dos Ayatollahs, inversa da que foi cumprida por Trump, é a de voltar à mesa das negociações (leia-se: permitir o desenvolvimento do programa enquanto se finge controlá-lo), percebemos imediatamente que as motivações são outras. Percebemos enfim a moral desta história:
A História não tem moral.