O Tour de France que termina domingo nos Campos Elíseos foi o mais rápido de sempre, no que indexa ao registo das suas médias horárias. Foi também um dos mais renhidos e espectaculares da sua renhida e espectacular história. Sigo atentamente a prova desde o princípio dos anos 90 e nunca tinha visto um duelo épico como aquele que Vingegaard e Pogačar serviram, nas duas últimas semanas, à audiência global.
Mas, se calhar, estas duas afirmações não são as mais significativas que podemos fazer sobre esta edição do Tour. Se calhar, a ilação mais pertinente a retirar do que aconteceu nas estradas francesas foi esta: as próximas edições da prova têm tudo para serem tão espectaculares como foi esta.
À partida para a edição 109 da veneranda corrida, aqueles que acreditavam que Tadej Pogačar não ia chegar, com alguma facilidade e a descontracção que nele é uma imagem de marca, vitorioso a Paris, deviam contar-se pelos dedos da mão mais castigada de um indisciplinado membro da Yakuza. E a primeira semana só confirmou essa certeza, porque o esloveno aproveitou um contra-relógio muito curtinho, o caos da etapa em pavé e as bonificações por ter vencido uma outra etapa que não estava destinado a conquistar, para conseguir uma vantagem de mais de 30 segundos sobre a concorrência directa, que na altura incluía, para além de Jonas Vingegaard, Geraint Thomas.
Mas depois de ter tido um desfalecimento na etapa 11 e perdido a camisola amarela para o dinamarquês da Jumbo Visma, as coisas ganharam uma dimensão verdadeiramente olímpica. Primeiro porque Pogačar é um atleta corajoso, extremamente auto-confiante e fiel até à insanidade a uma filosofia de ataque que, até aqui, tinha dado resultados fabulosos (a última vez que Tadej não ganhou uma corrida em que tenha participado foi em 2019). Depois porque Vingegaard, que já tinha sido segundo no Tour do ano passado, revelou quem é: um ciclista de eleição, que está completamente à altura do talento exuberante do eslovenoo, apesar de ter um estilo muito diferente e bem mais discreto.
Da etapa 12 até à etapa de hoje, Pogačar atacou todos os dias. Todos. A subir, a descer, em plano, ao sprint, de repelão e em endurance, sozinho ou com o apoio da equipa, que apesar de estar reduzida a metade, fez todos os possíveis para que o seu líder voltasse a vestir a camisola amarela. Debalde. A dada altura, Vingegaard parecia que tinha uma corda atada ao selim do adversário, porque de cada vez que o chefe de fila da EAU acelerava, o dinamarquês colava-se à sua roda traseira e não saia dali nem por nada deste mundo.
Mais a mais, os ataques não eram desencadeados, como é costume entre os favoritos à vitória no Tour, nos últimos quilómetros das etapas montanhosas. Começavam a 40 quilómetros do fim. E em etapas nem por isso tão montanhosas assim. Ainda hoje, Pogačar tentou de novo descolar de Vingegaard, numa etapa destinada a sprinters cujo desafio consistia em duas pequenas subidas de quarta categoria...
Está por cumprir o contra-relógio de 40 quilómetros de amanhã, mas Jonas Vingegaard, salvo um acontecimento catastrófico de categoria bíblica, vai sair vencedor desta epopeia. Continuo a achar que Pogačar é um atleta mais completo e o melhor ciclista da actualidade, mas enquanto este falhou num momento, o dinamarquês não falhou de todo e a sua vitória, revestida pela platina da glória, depois de uma batalha incessante de dez dias, é inteiramente merecida.
Voltando ao segundo parágrafo deste texto, o Tour deste ano deixa nos adeptos do ciclismo uma doce expectativa para o futuro: as próximas edições da Volta à França prometem, porque os dois rivais são muito jovens e enquanto Pogačar tiver um adversário ao seu nível, o espectáculo é garantido.
Além disso, à jovialidade de espírito e generosidade atlética do esloveno acresce a nobreza de carácter do dinamarquês que, na magnífica etapa de ontem, mostrou possuir a classe de um campeão, ao esperar por Pogačar numa descida, depois deste ter caído à saída de uma curva apertada.
Para finalizar, as menções honrosas: um dos ciclistas que mais contribuiu para o contexto épico deste Tour foi Wout van Aert. Envergou a camisola amarela durante 4 dias, ganhou a classificação por pontos (camisola verde) e três etapas*. Lutou até ao risco da meta por outras tantas. Sprintou como um louco, entrou em mais fugas do que aquelas que me consigo lembrar agora, subiu e desceu os alpes e os pirinéus como um trepador nato (que em teoria, não é), destacou-se como contra-relogista (segundo na primeira etapa e 1º na 20ª)*, ajudou o seu líder Vingegaard em muitas situações, sendo que na etapa de ontem essa assistência foi decisiva. É um ciclista enorme, com um coração de leão, baterias que parecem nunca encontrar um fim e pernas de monstro sagrado. Se não estivesse na Jumbo Visma, e se perdesse um quilinho ou dois, se calhar era candidato a lutar pela vitória já no Tour de 2023. Mas desconfio que, mais tarde ou mais cedo, essa candidatura vai mesmo acontecer.
Desde 1997 que uma equipa não ganhava, em simultâneo, as camisolas amarela e verde. Além disso, a Jumbo Visma ganhou 6 das 21 etapas*. Muito se devem ao belga voador estas façanhas da sua equipa, neste Tour. Quem gosta de ciclismo tem que adorar Wout van Aert. Não há outra hipótese.
O terceiro lugar de Geraint Thomas só pode parecer um resultado modesto a quem não tem seguido seu percurso. Apesar de ter ganho o Tour em 2018, o ciclista galês da Ineos tem andado arredado de vitórias e protagonismos nos últimos anos. Ainda assim, conseguiu agora um honroso lugar no pódio, afirmando-se como o melhor voltista entre o pelotão de meros mortais, porque Pogačar e Vingegaard já têm um lugar reservado no panteão da posteridade. Geraint foi consistente e inteligente durante as 3 semanas, capitalizando a experiência dos seus 36 anos de idade que pesam já, sim, mas que também são vantajosos, quando os sabemos usar.
Seja como for, o Tour de France de 2022 vai ficar para os anais. Isso é certo.
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* Dados actualizados depois do contra-relógio da 20ª etapa.