O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.Álvaro de Campos
Trago nas costas uma pedra tonelada, enquanto subo pela interminável escadaria.
E o que há no topo Evereste dessa subida?
A morte.
Quanto mais depressa subo os lances da existência,
Quanto mais ávidamente evito o elevador da glória,
Quanto mais degraus consumo na escalada,
Na ilusão de que a escalada é uma carga de cavalaria, um acto heroico,
Uma justificação cristã, um caminho para a redenção;
Quanto mais me canso pela inclinação a cima,
Mais e mais nitidez ganha o equívoco.
Ah, pobre Paulo Hasse Paixão, que pensas que o teu esforço é frutífero
Como uma árvore no pomar de fruto nenhum.
Ah, desgraçado ilusionista de ti próprio, que soltas pombas mortas
Da tua cartola transparente.
Onde pensas que vais, por esse íngreme caminho,
Quem pensas que és, insignificante alpinista?
Acaso julgas que és especial de corrida?
Porventura imaginas-te no terraço daqueles raros que escapam
à mamífera condição de serem homens?
És especial por que te imaginas especial.
Confundes-te com os sonhos de ti próprio, besta.
Misturas a realidade que te condena ao génio que não tens
E à posteridade que julgas possível;
Como se tu, que nem sequer foste capaz de ter filhos,
Pudesses aspirar a qualquer coisa diferente da vala comum.
Estou cansado como o Álvaro de Campos, mas não sou o Álvaro de Campos.
O cansaço do Álvaro de Campos era justificado.
O meu cansaço não tem desculpa.
Quem é que pode realmente dizer-se cansado
Quando não tem obra que mostrar?
Quem é que pode realmente cair de exaustão
Sem ter perdido sangue na praia de Troia
Ou versos na Tabacaria?
O que há em mim é sobretudo cansaço, sim,
Mas o meu cansaço é inglorificável.
É um cansaço de mim para mim, é um cansaço do que não fiz,
É um cansaço de quem não sou e de onde não fui e do que fui incapaz;
É um cansaço sem aventuras nem riscos nem ousadias, nem valentias de trincheira;
É um cansaço que não é merecido e que não merece
O descanso.
Há quem diga que vai dormir quando morrer;
Há quem acredite nesse repouso depois da morte;
Há quem nem se preocupe com isso, porque esta vida é só uma viagem
Entre o ponto A e o ponto B e tudo o resto é ficção de evangelista italiano;
Há quem viva bem aqui e agora com a ideia da vida que vai ter lá e depois;
Há quem nem sequer se importe com uma coisa ou com outra;
Mas eu, que vivi todos os minutos da minha vida entre o céu e o inferno,
Eu que sei muito bem o que Cristo exige de mim,
Que sei muito bem que não cumpri com as suas exigências mais elementares;
Tenho a consciência plena e lúcida de que não posso esperar nada,
Para além da banalidade que sempre conheci.
Vivi normal, vou morrer normal, serei julgado como normal
E como normal condenado:
O purgatório em que existi mortal, será o purgatório em que existirei para sempre.
E daí, o cansaço.
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...