domingo, outubro 20, 2024

NPC

Num universo lexical dominado por acrónimos de origem anglosaxónica, é muitas vezes difícil acompanhar a semântica do discurso online. Hoje descobri o significado de um desses acrónimos, NPC (Non Player Character), que deriva dos jogos vídeo - aquelas personagens que estão ali só para estarem ali mas que na verdade não decidem sobre o curso da acção.

Acontece que a figura do NPC caracteriza perfeitamente milhões de pessoas do Ocidente real.

Um NPC é um figurante, um adereço, uma espécie de espantalho. É ele que está ali mas podia ser um gajo qualquer. O que ele faz podia ser feito por outro alguém. É parte do drama como um grão de areia é parte do cimento armado. É útil à tragédia na medida em que usa uma máscara e foi empurrado para o coro. É imprescindível à comédia humana porque é risível. É personagem central do meme, inadvertidamente.

Um NPC foi vacinado quatro vezes contra a Covid. Vota PS (ou, no caso de ser um NPC criado por inteligência artificial, vota Iniciativa Liberal). Gosta de pagar impostos. Não sabe explicar porque raio é que os homens são diferentes das mulheres. Depende do estado para urinar. Se for um NPC masculino, é feminista. Se for um NPC feminino, é feminista.

O NPC, quando for grande, quer ser um NPC. E se lhe acontecer o azar de ter filhos (um NPC é contraceptivo por natureza) quer que eles sejam NPCs como ele, e que estudem para serem chefes de copa na redacção do Observador.

O NPC acha que o António Guterres é Buda reencarnado, mas rejeita Cristo porque um dia alguém lhe disse - e ele acreditou - que Einstein provou matematicamente que Deus não existe.

O NPC segue a ciência.

O NPC não tem respeito nenhum por ele próprio, mas trata toda a gente por doutor (ou doutora) e tem imensa consideração pelo pivot do telejornal, pela rapariga que manda no programa da tarde da RTP, pelo presidente do clube de futebol do seu coração (o NPC só tem um coração por causa de tanto amar o seu clube de futebol) e pelo presidente da república, que é uma joia de pessoa.

O NPC está sempre à espera que lhe digam o que dizer, o que comer, o que vestir, quando pode sair à rua e quando deve ficar em casa, em função do que lhe mandatam os adivinhos do boletim meteorológico, os sábios da protecção civil e o Ricardo Araújo Pereira.

O NPC até tem medo de pensar pela própria cabeça, que é coisa de fascistas.

O NPC tem uma bandeirinha ucraniana no perfil da conta de rede social e compra o Expresso, sem falta, todas as semanas.

O NPC adorou os jogos olímpicos de Paris. Principalmente a cerimónia de abertura, que foi o máximo.

O NPC sente-se imensamente culpado por não ter um automóvel eléctrico, vive no medo do apocalipse climático e separa criteriosamente o lixo que produz: frases feitas para um lado, subserviência para o outro e cobardia para o caixote dos plásticos.

O NPC não tem vontade própria, não tem autonomia, não tem personalidade, nem carácter, nem nada. Faz parte da manada e é tudo.

A este vasto colectivo de acéfalos eu costumo chamar bois, zombies, normalóides, servos e aquilo que em cada momento ocorre à minha já cansada faculdade criativa.

Devo chamar-lhes NPCs. E só para advertir a gentil audiência irei, a partir de agora, chamar-lhes NPCs.