terça-feira, fevereiro 26, 2008
Acabei hoje a leitura de sabor indescritível de "A Essência do Comércio e Outros Textos de Teoria Económica", um livrinho lamentavelmente pequeno da Editorial Nova Ática, que reúne alguns artigos de macro e micro economia que Fernando Pessoa escreveu para a Revista do Comércio e Contabilidade, no ano de 1926. Não preciso de estar para aqui com floreados sobre o génio monstruoso que o homem era e sobre a abrangência inacreditável da sua prosápia, mas a clarividência, a actualidade e a coragem liberal destes textos deixou-me de pantanas, como sempre me deixam de pantanas as palavras do Fernandinho. Este será o primeiro post de 4, em que vos ofereço uns pequenos excertos desta grande maravilha (desculpem lá ò rapaziada da Ática). Começo por roubar um bocadinho do primeiro texto - "A Essência do Comércio" - que deixa uma excelente lição aos marketeers e publicitários de todo o mundo: conheçam o vosso mercado.
"Um comerciante, qualquer que seja, não é mais que um servidor do público, ou de um público; e recebe uma paga, a que chama o seu “lucro”, pela prestação desse serviço. Ora toda a gente que serve deve, parece-nos, buscar agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a quem se serve - mas estudá-lo sem preconceitos nem antecipações; partindo, não do princípio de que os outros pensam como nós, ou devem pensar como nós - porque em geral não pensam como nós -, mas do princípio de que, se queremos servir aos outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como eles: o que temos que ver é como é que eles efectivamente pensam, e não como é que nos seria agradável ou conveniente que eles pensassem.
Nada revela mais uma incapacidade fundamental para o exercício do comércio que o hábito de concluir o que os outros querem sem estudar os outros, fechando-nos no gabinete da nossa própria cabeça, e esquecendo que os olhos e os ouvidos - os sentidos, enfim - é que fornecem os elementos que o nosso cérebro há de elaborar, para com essa elaboração formar a nossa experiência.
(...)
A maneira de fabricar, de apresentar, de distribuir e de reclamar um artigo varia conforme a índole geral dos indivíduos que compõem o mercado onde se pretende vendê–lo. Num meio de gente educada as condições são diferentes, para todos estes casos que num meio de analfabetos. Um meio provinciano – educado ou não – tem uma psicologia distinta da de um meio de cidade.
(...)
O modo de encarar a vida, ou, pelo menos, certos aspectos da vida, varia de país para país, de região para região. A humanidade, sem dúvida, é a mesma em toda a parte. Sucede, porém, que em toda a parte é diferente. É a mesma nas coisas essenciais, nos sentimentos fundamentais; mas, as mais das vezes, não são as coisas realmente essenciais que a preocupam como fundamentais. Em todos os tempos, em todas as terras, é o local, o superficial, o ocasional, o que mais tem preocupado a humanidade. Ora, é ao que mais preocupa a humanidade, e constitui portanto as suas necessidades, que o comércio essencialmente se dirige. E é por isso que o comerciante, que deveras o seja, tem para consigo mesmo o dever de estudar psicologicamente, e um a um, os agrupamentos humanos a que destina os seus artigos.
(...)
Em resumo: o comerciante é um servidor público; tem que estudar esse público, e as diferenças de público para público se o artigo que vende ou explora não é limitado a um mercado só. O comerciante não pode ter opiniões como comerciante, nem deve fazer comercialmente qualquer coisa que leve a crer que as tem. Um comerciante português que faça um rótulo encarnado e verde, ou azul e branco, comete um erro comercial: quem segue a política das cores do rótulo não lhe compra o produto por isso, e quem segue a política oposta deixa muitas vezes de o comprar. Por um lado, não ganha, por outro o perde. Mais incisivamente ainda: o comerciante não tem personalidade, tem comércio; a sua personalidade deve estar subordinada como comerciante, ao seu comércio; e o seu comércio está fatalmente subordinado ao seu mercado, isto é, ao público que o fará comércio e não brincadeira de criança com escritório e escrita."