I
Não sou nenhum génio e não engano ninguém:
Nem vou morrer cedo nem nunca fui amado pelos deuses.
Não, nem, nunca, nenhum: sou eu.
Não, nem, nunca, ninguém: e é tudo.
II
Toda a gente é pequenina e eu também sou minúsculo como gente grande.
Talvez por causa disso de se ser canina dentro de um inferno do tamanho do universo,
A minha mãe sempre me avisou a navegação,
A minha mãe sempre me disse da vida ser infiel puta.
E eu acreditei nela e foi desse acreditar que fiz o meu destino triste,
Foi disso que fiz a minha desgraça de pobre diabo,
A minha absoluta desgraça de pobre diabo que afinal nada tem que ver com a puta da vida;
Que é exterior a esse facto igualmente absoluto, objectivo e lamentável
Que a minha mãe tinha gosto de me ensinar.
Porque se a vida é assim comercial, é assim comercial para todos
E se assim é infiel, assim infiel é para todos
E se eu sou mais infeliz e desgraçado que a maioria,
É porque transcendi a miséria que é comum;
Fui mais fundo, enlouqueci mais, errei excessivamente,
Fui vil para além da vilania que é suposta nos homens.
Porque se toda a gente é pequena e eu, que também sou diminuto,
Quântico no pântano incontável da macro-física,
Sigo ainda assim para além das estrelas,
Sigo ainda assim para além da noite e dos pesadelos;
É porque vou a caminho de um fim imenso, com fome.
É porque a morte é o meu prometido momento de grandeza.
III
A minha vida é um velório de 45 anos.
As pessoas entram, prestam os seus respeitos e saem aliviadas,
Como quem retira a máscara incómoda que o baile entediante exigia de regra.
No entretanto, fazem o possível para encontrar algo de agradável e apropriado
Para dizer do cadáver - tarefa ingrata;
Fazem o possível - e o impossível - para escaparem incólumes
Ao breve confronto com a morte.
IV
Há muito que já não devia andar por aqui,
Bípede periclitante sobre a instável curvatura da Terra.
Há muito que já devia ter sido raptado por extra-terrestres, morrido num acidente de viação;
Há muito que já devia ter sido assassinado por um psicopata, desaparecido em combate;
Que já devia ter sido carbonizado numa manifestação, ceifado pela cirrose,
Interrompido pelo cancro, terminado pelas drogas, enforcado no sótão,
Suicidado da ponte abaixo ou por baixo da locomotiva ou a tiro de pistola.
Mas eu, que não guardo no genoma nada que possa interessar aos astronautas do mistério;
Eu, que respeito os limites de velocidade e já poucas vezes levo a bebedeira ao volante;
Eu, que vivo num país com escassez de psicopatas e medo das guerras;
Eu, que não sei como dar o nó à forca, nem nunca vivi numa casa com sótão;
Eu, que não tenho tomates para me jogar da ponte abaixo ou para baixo do comboio,
Nem causa que justifique a imolação em praça pública;
Sim, eu, que não tenho imaginação para suicídios criativos
E que vivo num país de burocratas, onde possuir uma arma é complicado e oneroso;
Eu, que nem bebo assim tanto para poder morrer com pressa,
Que nem chego a fumar 3 maços por dia,
Que não chuto cavalo nem dependo da cocaína;
Eu, que sou tão modesto de vícios como de virtudes, que sou de moderados excessos,
Que não sei oferecer-me em sacrifício, que não tenho fé que chegue para ser mártir;
Eu, que tanto desejo a morte, vou devagar apodrecendo.
Eu, que tanto desejo a paz última, vou em primeira velocidade,
Vou sem saber do ponto de embraiagem, aos solavancos, aos sobressaltos,
Percorrendo lentamente a inviável estrada da existência.
V
A minha vida é um velório de 45 anos e por mais anos ainda velório será,
Até porque, mais que provavelmente, vou precisar de pedir dinheiro emprestado
Para pagar a conta do funeral.