O Império Marítimo Português 1415-1825 - C. R. Boxer - Edições 70
Talvez a mais emblemática obra sobre a gesta marítima portuguesa, este tratado não dá porém solução ao mistério que se propõe resolver. Na introdução, Boxer manifesta a sua perplexidade: como é que um país pobre, marginal e insignificante como Portugal consegue o milagre de dominar o mundo, fundando o primeiro império colonial de sempre; frágil, caótico, demograficamente impossível, mas de tal forma bem sucedido que acaba, pasme-se, por durar sobre todos os que lhe seguiram, sendo paradoxalmente o último império colonial a cair? A verdade é que o autor acaba por não encontrar resposta para as suas perplexidades. Apanhado pelos ventos da história (o livro foi usado por detractores do império colonial português, tanto como pela propaganda do Estado Novo), C. R. Boxer cai num erro de colegial que compromete, no meu entender, a virtude da sua erudição: recusa-se a perceber que ao historiador não compete ser juíz. O contexto social, ético e cultural dos descobrimentos portugueses não pode ser avaliado à luz da moral do século XX. E assim, erradamente, os portugueses são-nos apresentados como um povo ferozmente anti-semita e alegremente esclavagista, constituído em grande parte por fanáticos religiosos. Na verdade, os portugueses não eram seguramente católicos mais fanáticos que os espanhóis, não eram mais anti-semitas que a maior parte dos povos europeus da sua altura, nem viam o comércio de carne humana com melhores ou piores olhos que os seus adversários directos na corrida pela liderança do comércio no Atlântico setecentista. Acresce que a mentalidade WASP do autor está sempre presente: quando os ingleses e os holandeses roubam, trata-se de corso. Quando são os portugueses a pilhar, trata-se de decadência, corrupção e de um inevitável decaimento latino para a desonestidade.
Toda a obra, mas principalmente a sua segunda parte, é de tal forma deprimente e eloquente sobre a desorganização e disfunção do império que o autor não consegue perceber como é os descobrimentos foram sequer possíveis. Os reis são sem glória nem visão (até D. João II é um incompetente e o único que escapa é Filipe II, que é de qualquer forma grandemente ignorado durante toda a obra) e basicamente nunca houve soldados, marinheiros, geógrafos, barcos e capitalistas cujo número e qualidade chegasse para uma aventura destas. No caso da qualidade dos soldados portugueses, Boxer parece ignorar que a tradição militar lusitana teria, à altura dos descobrimentos, uma herança de combatividade e competência muito assinalável, com vitórias épicas nas guerras fronteiriças e de reconquista. Na verdade, não há qualquer indício que a performance bélica fosse uma fraqueza do império. Dada a escala geográfica da gesta marítima, os parcos recursos demográficos da metrópole e o valor e a diversidade dos inimigos que enfrentámos, tudo indica, ao contrário, que as forças militares portuguesas se distinguiam pela sua eficiência, superioridade tecnológica e acutilância em combate.
As contradições entre os factos históricos e as conclusões do historiador são uma constante, à grande e à pequena escala. Por exemplo: nas páginas de Boxer constatamos supreendentemente que a Companhia do Brasil foi um fracassso, cujo sucesso colocou enormes problemas de sobrevivência aos portos portugueses, que sofriam como o monopólio (!). Outro exemplo: quando os padres jesuítas dão, na China, sólidos indícios de tolerância racial, fazem-no exclusivamente por pragmatismo. Mas quando em Goa recusam a equalização étnica das carreiras eclesiásticas imposta por Pombal já não são apenas ambiciosos. São racistas da pior espécie, mesmo.
É também recorrente a afirmação de que os portugueses eram um povo ignorante, conservador, alérgico à mudança, ficando o leitor sem perceber, mais uma vez, como é que este povo assim atrasado consegui inaugurar uma época de inovação técnica e de aventura cosmopolita sem grandes precedentes na história da humanidade.
Perdido dentro dos seus próprios mal entendidos, C. R. Boxer, acaba o seu manual de história-para-inglês-ver explicando ao leitor que o Império Marítimo Português só foi possível dada a fé irracional em dois mitos inter-relacionados e alimentados por uma inexpugável fé católica: o do retorno sebastiânico e o do Quinto-Império.
Sinceramente, que tese tão fraquinha.
A Cidade Impura - Andrew Miller - Editorial Presença
Autor de "A Dor Industriosa" - um dos mais poderosos romances históriocos que li neste século (apesar do livro ser de 1997) - Andrew Miller voltou ao meu convívio com "A Cidade Impura", a história de um jovem engenheiro setecentista a quem a coroa atribui a desagradável tarefa de trasladar todos os cadáveres de um cemitério decrépito de Paris, quando a cidade está à beira da Revolução e transpira decadência por todos os lados. O resultado cede à tentação do imaginário gótico que a sinopse sugere e consegue ser elegante e sóbrio e de leitura extremamente saborosa. Mais uma pérola.
Cenas da Vida Diplomática - Lawrence Durrel - Ulisseia
Não é comum que a leitura me faça rir à gargalhada. É mesmo muito raro. Mas Lawrence Durell e as suas aventuras (contadas pelo impagável Antrobus) como diplomata na embaixada britânica em Belgrado são um fartote completo. Uma figura de vulto das letras do Século XX, poeta, ensaísta, dramaturgo e novelista, Lawrence Durrel tem uma obra que não é para brincadeiras e é por isso que ainda mais notável se mostra este livro de contos, onde o célebre humor inglês se manifesta numa espécie de crítica de costumes cínica e hilariante. Ninguém imagina o que me divertiu a leitura deste livro.
O Franco Atirador Paciente - Arturo Pérez-Reverte - ASA
Uma novela menor de Arturo Pérez-Reverte, na minha humilde opinião. E eu gosto muito dele. Mas esta viagem ao mundo secreto das tribos do graffiti não aquece nem arrefece, sinceramente, nem está especialmente bem prosada, o que não é de todo um costume deste excelente autor espanhol.
História Virtual - Coordenação de Niall Ferguson - Tinta da China
Como apaixonado da
História Contrafactual, logo que vi este livro na banca da Tinta da China, na Feira do Livro deste ano, abriu-se-me um apetite imenso. Que não foi de todo defraudado por esta suculenta refeição de ensaios que exploram a probabilidade de certos episódios históricos com grande peso epistemológico não terem sucedido de todo, ou terem sucedido de forma diversa. A história é muitas vezes contingencial e muito menos determinista do que somos levados a pensar e nem tudo o que foi terá necessariamente que ter sido exactamente assim...
No final, o coordenador escreve um dos mais originais posfácios que já li na minha vida (sem nenhum exagero), ao redigir um tratado de história contrafactual em nome de um historiador que vive num mundo onde os Estados Unidos nunca foram independentes da coroa inglesa, a Europa ocidental permanece ocupada pelos nazis (com excepção das ilhas britânicas) e o bloco soviético ainda existe.
Livrinho e-s-p-e-c-t-a-c-u-l-a-r.
A Irmã - Sándor Márai - D. Quixote
Não sei bem explicar porquê, mas desta vez, e contra o que é costume nele, Sándor Márai não me levou ao céu da literatura. Trata-se, claro, de um romance competente e intenso, característico deste ilustre romancista húngaro, mas a triste história do pianista Z., espécie de Montanha Mágica em formato de bolso, deixou-me um bocadinho indiferente.
Uma Viagem à India - Gonçalo M. Tavares - Caminho
Não é sem embaraço que confesso que este foi o primeiro e até agora único livro que li deste autor. Apesar disso, não me importo nada de afirmar já aqui que Gonçalo M. Tavares é um génio das letras do meu país. Poema épico em dez cantos, de estrutura clássica e verso livre, a odisseia de Bloom é um prodígio lírico de vanguarda, de tal forma que nem me atrevo a mais que isto: "Uma Viagem à Índia" é uma obra prima, ponto final, parágrafo.
Paris Após a Libertação 1944 -1949 - Antony Beevor e Artemis Cooper - Bertrand Editora
Este é daqueles livros de história do Século XX que nos ajudam a perceber a Europa do Século XXI e um bocadinho do futuro que nos aguarda no Ocidente.
Retrato nú e crú da França na altura da libertação, poderosa e veeemente aguarela de uma cidade em tempo de glórias e misérias, o trabalho de Antony Beevor (de quem já tinha lido
esta competentíssima história da Gerra Civil Espanhola) e Artemis Cooper vai muito fundo na análise psicológica dos protagonistas em particular e dos franceses no geral. A forma como se determinou quem era um bom francês e quem era um mau francês nestes anos do Governo Provisório e da Quarta República dependeu sempre muito da forças que exerciam o poder e durante a grata leitura da obra, ficamos a saber detalhes bem sugestivos da praxis libertadora, como por exemplo: os julgamentos a que se sujeitaram os colaborocionistas tinham como jurados elementos da resistência e familiares das vítimas da ocupação nazi. Os procedimentos do tribunal eram constantemente interrompidos por membros do júri que gritavam ameaças e insultos aos acusados. Mas ficamos também a saber factos de relevância geo-estratégica deste género: contra a vontade do Partido Comunista Francês, Estaline escusou-se à sovietização da França.
Sobre os personagens principais, destaca-se, claro, o carácter arrogante e paradoxal de Charles de Gaulle, "o homem que sem dúvida amava a França, mas não os franceses!" e que no célebre discurso da libertação, proferido na noite de 25 de Agosto de 1944 no l'Hôtel de Ville, não foi capaz de uma palavra de agradecimento aos aliados.
Adorei este livro.
África
- A Vitória Traída - J da Cruz Cunha, Kaúlza de Arriaga, Bethencourt
Rodrigues, Silvino Silvério Marques - Editorial Intervenção
Documento assinado pelos governadores militares das colónias ao tempo da Revolução de Abril, este conjunto de ensaios, onde a prosa é, geralmente, pobre mas os conteúdos estatísticos são de uma riqueza extraordinária, procura demonstrar que as guerras coloniais não estavam perdidas de todo.
Por um lado, a guerra não era cara para o Estado Português: os custos militares dos diversos conflitos só acrescentavam 6 a 8 milhões de contos por ano àquilo que o orçamento geral do estado previa em tempo de paz. No treze anos em que decorreram, as guerras coloniais custaram apenas 90 milhões de contos, valor pouco significativo para um PIB anual que em 1970 era de 160 milhões de contos e que em 73 era já quase o dobro.
Nas colónias, as economias prosperavam (correspondendo ao período de crescimento recordista do PIB na metrópole: 1967-73) e a administração pública (governos civis, tribunais, escolas e hospitais) funcionava normalmente sobre os extensos territórios ultramarinos, com excepção de algumas áreas fronteiriças localizadas, onde os movimentos rebeldes tinham uma maior penetração territorial, dada a protecção e o apoio logístico que encontravam em certos países vizinhos.
Em 13 anos de guerra a permilagem de mortos anual nunca ultrapassou os 2,6, valor baixo e impressionante, principalmente se comparado com outros números de guerras coloniais em África. Um exemplo: portugal perdeu 8.131 militares nas suas várias guerras coloniais. A França perdeu 14.000 só na guerra de libertação da Argélia. Esta baixa permilagem também é significativa sobre a competência e o moral das tropas em África, que nos dois parâmetros era mais alta do que comummente se supõe.
Os autores concluem que a entrega das colónias às forças inimigas foi assim um acto político apenas, não condicionado por uma inevitabilidade militar que nunca exisitiu e que só o carácter revolucionário do evento de Abril de 1974 determinou.
Só mais um facto curioso: alguns dos generais consideram Nixon um amigo de Portugal e Kennedy um inimigo, o que só suporta uma tese que já desenvolvi aqui no blog (ponto 3
deste post).
A Invenção de Morel - Adolfo Bioy Casares - Antígona
A Invenção de Morel é um obra basilar da escola argentina e é com embaraço que confesso a sua primeira leitura, que muito tardou. Estranha novela de carácter fantástico e borgiano (Bioy Casares e Jorge Luís Borges foram amigos a vida toda e o livro é dedicado ao biliotecário de Buenos Aires, que é também o autor do prólogo), é uma
pièce de résistance que se estrutura à volta de uma ideia de eternidade que é simultaneamente romântica e perturbadora. Romance de digestão filosófica muito complicada, para voltar a ler, daqui a dois ou três anos.
A Tarde Azul - William Boyd - Relógio de Água
A história de um amor perdidio no tempo e na geografia, entrecortada pela muitas vezes esquecida guerra
Filipo-Americana (1899-1902), contada por Salvador Carriscant, um médico romântico muito bem esgalhado e narrada pela sua filha. Um bom romance do autor de "Any Human Heart".
Primos Gémeos, Triângulos Curvos e Outras Histórias da Matemática - Jorge Buescu - Gradiva
Mais um condensado de pequenos ensaios que fazem uma excelente pedagogia da matemática, escrito pelo incontornável Professor Jorge Buescu, que muito contribui para o cenário positivo da divulgação científica em língua portuguesa. Muitos dos temas escolhidos desta vez são extremamente pertinentes para os tempos que correm (o caso da distância máxima entre números primos e o estado caótico em que se encontra a publicação online de artigos científcos, só para dar dois exemplos) e o livro lê-se melhor que um romance de aventuras. É provável que os assuntos tratados nesta obra regressem aqui ao blog, como já
aconteceu anteriormente com outros textos do Professor.