quarta-feira, dezembro 12, 2018

Guerra à verdade.


Sobre a infame tradição da figurinha do ano, teimosamente perpetrada pela revista Time, já aqui protestei bastante. Volto a repetir uma frase desse post de 2015:

Na medida em que já elegeram gente tão ilustre como Chiang Kai-Chek (1937), Adolf Hitler (1938), Joseph Estaline (por duas vezes: 1939 e 1942), o Rei Faisal (1974, em plena crise energética) e Hayatolla Khomeini (1979), seria de esperar que mais tarde ou mais cedo achassem por bem terminar com esta actividade de mau gosto. Mas não. Persistem.

A eleição deste ano não fugiu à desastrosa regra. A capa de Dezembro celebra pomposamente um grupo muito discutível de jornalistas, com o lead "The Guardians and the War on Truth". Para além de ser deveras questionável a virtude de um grupo de jornalistas eleger outro grupo de jornalistas; para além do jornalismo que a Time defende ser precisamente o primeiro inimigo da verdade, como é óbvio para milhões e milhões de pessoas que deixaram entretanto de ler - e de comprar - este género de literatura doutrinária sem qualquer ligação à realidade (o que matou a imprensa escrita, não foi a internet, foi a ideologia); para além da péssima qualidade gráfica - e fotográfica - das 4 capas, há que esclarecer os meus escassos e pacientes leitores sobre o perfil de Jamal Khashoggi, o mais recente mártir do circo mediático internacional e um dos eleitos da Time.

Para começar, Jamal Khashoggi não é bem um jornalista, pelo menos não no sentido ocidental do termo. Entre as diversas actividades profissionais que desenvolvia, encontram-se as de diplomata, espião, spin doctor, lobista e consultor da família real saudita, que em outubro o torturou até à morte (aparentemente Jamal trabalhava para a família certa, mas para o irmão errado). O fantástico CV deste novo herói da imprensa está documentado, é do domínio público para quem quiser fazer uma breve pesquisa na web e está bem sintetizado aqui. Torna-se evidente que o jornalismo do falecido saudita surgia mais como uma ferramenta de reforço da sua performance multi-disciplinar, do que o inverso.

Neto do médico do primeiro rei da actual dinastia saudita, sobrinho de um riquíssimo e notabilíssimo traficante de armas e primo de Fayed, o célebre amante de Diana Spencer; membro da Irmandade Muçulmana, organização radical islâmica que luta pela institucionalização da lei da Sharia e que financia o Hamas, entre outras simpáticas agremiações terroristas; velho amigo de Osama Bin Laden, que entrevistou várias vezes, com quem viajou e a quem serviu de pombo-correio; zeloso defensor dos interesses do regime aristocrático de base medieval, constituído oligarquicamente por facínoras multi-milionários, e do consequente estado totalitário e, para todos os efeitos civilizacionais, bárbaro, que se instalou na Arábia Saudita desde que em 1927 os ingleses concederam a independência do território peninsular a Abdul Aziz; Khashoggi é um personagem complexo e pouco recomendável. Não merecia a horrível morte a que foi sujeito, claro, ninguém merece, mas está a milhões de anos luz de poder ser vendido como um guardião na luta pela verdade.

A verdade não é para aqui chamada, claro. Isto é apenas política. E baixa política.