quarta-feira, novembro 12, 2008

Olha, um gémeo do Álvaro de Campos...


Acabo de descobrir, pela mão de David Mourão Ferreira, este sujeito poeta chamado Valery Larbaud (1881-1957) que foi um dandy modernista da geração do Pessoa, mas em francês. E que também tinha um heterónimo, chamado Bartlebooth (cruzamento onomástico entre o Bartleby de Melville e o Barnabooth de Perec em "La Vie mode d'emploi"); e que também tinha pancada por Whitman (não lhe chamou mestre querido mas ainda hoje os franceses lêem o seu Walt pela tradução dele). Reparem bem, geografia à parte, se não podia ter sido o Álvaro de Campos, ele mesmo, a escrever isto que esse tal de Bartlebooth escreveu:

ODE

Empresta-me o teu grande ruído, o teu doce andamento,
O teu nocturno deslizar através da Europa iluminada,
Ó comboio de luxo! e a música tão angustiante
Que sussurra ao longo dos teus corredores de couro dourado,
Enquanto por detrás das portas lacadas, com loquetes de cobre maciço,
Dormem os milionários.
Cantarolando percorro os teus corredores
E sigo a tua corrida até Viena e Budapeste,
Misturando a minha voz às tuas cem mil vozes,
Ó Harmonika-Zug!

Senti pela primeira vez toda a doçura de viver,
Numa cabina do Norte-Expresso, entre Wirballen e Pskow,
Deslizava-se através das pradarias, onde pastores,
Ao pé de grupos de grandes árvores semelhantes a colinas,
Estavam vestidos de sujas e cruas peles de carneiro...
(Oito horas da manhã no Outono, e a belíssima cantora
De olhos violeta cantava na cabina ao lado.)
E vós, grandes espaços através dos quais vi passar a Sibéria e os montes do Sâmnio,
A áspera Castela sem flores, e o mar de Mármara sob uma chuva tépida!

Emprestai-me, ó Oriente-Expresso, Sud-Brenner-Bahn, emprestai-me
Os vossos miraculosos ruídos surdos e
As vossas vibrantes vozes de corda de viola;
Emprestai-me a respiração ligeira e fácil
Das altas e delgadas locomotivas, com movimentos
Tão desembaraçados, as locomotivas dos rápidos
Precedendo sem esforço quatro vagões amarelos com letras de ouro
Nas solidões montanhosas da Sérvia,
E, mais longe, através da Bulgária cheia de rosas...

Ah! é preciso que esses ruídos e esse momento
Entrem no meu poema e digam
Para mim a minha vida indizível, a minha vida
De criança que não quer saber nada, a não ser
Continuar eternamente à espera de coisas vagas.


Ele há coincidências do catano, não há? Qualquer dia pego outra vez no terceiro volume das "Vozes da Poesia Europeia" do David M. F. e ainda encontro um tipo qualquer que escreveu de outra maneira a Tabacaria. Não faltava mais nada.