A editora Wilder não foi capaz de publicar a monumental obra crítica de Kant sem um intróito politicamente correcto que é das coisas mais ridículas que alguma vez li:
"This book is a product of its time and does not reflect the same
values as it would if it were written today. Parents might wish to
discuss with their children how views on race, gender, sexuality,
ethnicity, and interpersonal relations have changed since this book was
written before allowing them to read this classic work."
Há aqui tantos disparates que uma pessoa sem mais que fazer podia escrever uma outra Crítica da Razão Pura só a propósito deste curto parágrafo. Vou tentar resumi-los.
O primeiro disparate é que a editora Wilder parece acreditar que toda a gente contemporânea tem as mesmas e obtusas opiniões sobre raça, género, sexualidade, etnia e relações interpessoais, o que é de uma falsidade chocante. Eu, por exemplo, não partilho dos mesmos valores da editora Wilder. Nem pouco mais ou menos. O meu amigo
José Abel Aguiar, que me alertou para esta obscenidade, e o redactor da
Open Culture que expõe o cuidado ridículo da Wilder, também não. Já somos três. Devemos ser muitos milhões.
O segundo disparate é a ideia que a obra de Kant pode ser perniciosa para os seus estudiosos. A obra de Kant é uma das grandes conquistas intelectuais da história da humanidade. Na disciplina da filosofia só terá paralelo em Platão e em Nietzche. Não faz mal nenhum ler o génio de Königsberg, pelo contrário. E, que se saiba, nunca ninguém cometeu uma atrocidade em nome do seu monumental esforço crítico. Entre generais e terroristas, ditadores e genocidas, assassinos e traficantes de droga, polícias e ladrões, não há quem tenha utilizado o idealismo de Kant como justificação para a barbárie. E também desconfio que o Ku Klux Klan não refere os Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura no seu manifesto de intenções.
O terceiro disparate é considerar que o jovem leitor de Kant deve ser sujeito a um aviso prévio dos seus pais sobre os perigos de semelhante literatura. Num ambiente cultural que oscila entre a pornografia e os heróis da Marvel, submeter um filho à prosa do filósofo alemão, sem uma conveniente lavagem cerebral, parece consubstanciar um risco inaceitável. Acresce que é precisamente este tipo de falsa protecção das criaturas infantes que tem produzido nas últimas décadas gerações de
snowflakes, figurinhas hiper-sensíveis a tudo e a mais alguma coisa, radicalmente avessas à opinião discordante, completamente impreparadas para os conflitos da vida, as contradições da filosofia e as desgraças do destino.
O quarto disparate é julgar o discurso de Immanuel Kant à luz dos valores contemporâneos, sejam eles quais forem. Este é um síndroma recorrente nos malditos dias que correm e só é explicável pelo triunfo da imbecilidade endémica e da total ausência de sentido histórico que imperam um pouco por todo lado, nas universidades, nas redes sociais e na imprensa. Atrevo-me a considerar que, felizmente para Kant, os valores da sua época eram menos fascizantes do que são agora, caso contrário não tinha conseguido publicar uma linha que fosse.
O quinto disparate está na infeliz ideia de que os jovens devem ser poupados a escolas de pensamento que não reflectem o mainstream contemporâneo. Primeiro porque a escolástica contemporânea é de uma pobreza constrangedora (enumerem-me, por favor, cinco grandes filósofos do período 1945-2019), depois porque a aprendizagem da filosofia, como bem ensinava Sócrates, faz-se muito frequentemente através do exercício dialéctico e da exposição ao contraditório.
O sexto disparate consiste na pretensão de que os valores actuais mudaram substancialmente desde que Kant escreveu a sua monumental Crítica. No confortável edifício da sede da Wilder, na Virgínia, é capaz de ser certo que o quadro sistémico do século XVIII alemão esteja um bocado datado. Mas calculo que mais de um terço da humanidade viva hoje num ambiente cultural, económico e social que não faz justiça aos direitos, liberdades e garantias do iluminismo europeu. Basta registar que na Índia vivem 1.3 biliões de pessoas subjugadas ao niilismo genético das castas.
O sétimo disparate é o acto censório que nem sequer é velado: a leitura de Kant implica um controlo parental que é, claro, de ordem eminentemente autoritária e que conduz inevitavelmente a um maniqueísmo assustador. Se o jovem académico precisa de autorização para ler Kant, precisará seguramente de preencher um formulário pidesco para ler todo o resto da filosofia ocidental. No momento em que Kant se torna perigoso, que classificação atribuir a Stirner, Proudhon, Marx, Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger? E se desejarmos condicionar os nossos filhos às ideias sobre género, sexualidade, raça e etnia da editora Wilder, como é que podemos permitir que leiam os filósofos da antiguidade clássica?
A solução limpinha é proibir isso tudo. Incendiar as bibliotecas, porque não? A Amazon, que domina o mercado livreiro na América,
já começou a trabalhar nesse sentido. E ainda há pouco tempo escrevi
aqui no blog sobre outras intenções totalitárias e arrepiantes deste género.
Hoje em dia, toda a gente que não repete a tabuada moral das políticas de identidade será racista, sexista, fascista e - de uma maneira geral - uma má pessoa. Neste sentido, Kant é um gajo horrível.
Por amor de Deus.