sexta-feira, agosto 26, 2005
Volta à Vergonha.
O que os franceses e os alemães estão a fazer com o Lance Armstrong é bem o exemplo da decadência moral da Europa. O homem deve ser para aí o atleta mais controlado pela polícia do doping de todos os tempos e o ciclismo deve ser para aí o desporto mais dopado da história universal. A Volta à França foi, até 1998, um retiro seguro para os dopers mais radicais e, nos últimos 40 anos, o único grande atleta que a venceu sem o empurrão da droga deve ter sido precisamente Lance Armstrong. O homem ganhou a Volta a França 7 vezes seguidas, fazendo chichi para a proveta dia sim, dia não. Não pode existir qualquer dúvida sobre a sua superioridade atlética e desportiva e é preciso não ter vergonha nenhuma para fazer uma coisa destas. É preciso ser-se francês ou alemão, é preciso ser-se baixote e pequenino, ser-se invejoso e traumatizado, mal formado e mal amado para conceber uma armadilha destas. Bem armada, para não dar lugar a contra-análises. Bem temporizada, para ser fabricada às escondidas do atleta. Bem promovida, para convencer os incautos. Que tristeza.
Voando Sobre um Ninho de Corvos
(Original de 1993 em cinco posts)
POST SEGUNDO
Também temos televisão. É importante termos televisão, muita televisão. Acho que guardam pássaros lá dentro. Quando me deixam sair da cela, o que acontece com uma curiosa e assimétrica raridade, é para a saleta da televisão que eu vou. O Fragoso está lá sempre à espreita dos pássaros, segurando o inseparável bacio como quem arma uma caçadeira de canos curtos. O Fragoso já cá mora há que tempos. Foi por causa de uma constipação, diz ele, daquelas que alteram a constituição metafísica do universo?, pergunto eu. Está sempre a escarrar para o penico e de vez em quando lá se masturba um bocadinho na saleta, à conta de certas gralhas do horário nobre. Os enfermeiros dão-lhe imensos chutos nos tomates, para ver se ele perde o vício, mas é debalde. Seja como for é um sujeito às direitas, o Fragoso; sempre com bons modos para os médicos, como se lhes entendesse a linguagem. Deve ser por isso que o deixam andar por todo o lado, ele e o seu querido escarrador de esmalte. Uma vez contou-me que cuspiu na cara de um sargento, quando esteve a cumprir o serviço militar nos Açores. Perguntei-lhe porque carga de água mas ele já nem se lembrava. Tem má memória, o Fragoso, mas é católico e volta não volta sai-se com umas rábulas sobre deus e o diabo e os arcanjos todos juntos para a festa do fim dos tempos. Nunca consegui acreditar no deus do Papa; a minha mitologia é outra: Zeus todo poderoso joga Black Jack no casino celestial. Aposta com vidas humanas e a banca ganha sempre. Pássaros. Olho para o telejornal e só vejo pássaros.
segunda-feira, agosto 22, 2005
"Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo! "
- Álvaro de Campos -
Tenho uma amiga que se considera "humanista". Que acha simplesmente impossível ser-se de outro modo. Ora eu, que acho até mais que possível; eu, que acho até muitíssimo aconselhável evitar um afecto apriorístico, generalista e piegas pelas pessoas todas; eu que acho até higiénico desconfiar da mole humana; tenho o prazer de discordar. Elevado este assunto a post do Elsinore, não tenho outro dever que a exposição de um breve argumentário.
Para já, para já: não sou um humanista porque tenho a consciência de que a humanidade é um virús. Se retirarmos o homem do universo, obtemos uma constante cósmica - um pleno de perfeição. O Chimpanzé, amigos, faz sentido. A Formiga Vermelha, a Mosca da Fruta, O Colibri e o Rinoceronte fazem sentido. Estas sim, são criaturas Sapiens, na medida em que têm a sabedoria campeã para qualquer locatário do Planeta Terra. Sobrevivem com competência e sentido estético, não fazem perguntas, não precisam de deus, não têm moral e não desfeiam a paisagem. Já o homem, caramba, o homem não faz sentido ontológico absolutamente nenhum porque precisa de transcendência e é uma bactéria religiosa, científica, civilizacional, complexa e, claro está, destrambelhada! Se a mãe natureza é um logaritmo imperfeito é apenas porque se deixou penetrar pelo Lambda irritante da alma humana! O homem é este animal que persegue ambições delirantes como o saber fenomenológico da origem das coisas, o mastigar constante da ideia do divino, o devaneio arrogante de pensar que existem conceitos penta-essenciais como a Verdade, o Conhecimento, a Imortalidade. Conceitos diletantes como o bem e o mal, o pecado e a redenção. É que o homem exige a redenção e o caminho para a redenção do homem é o humanismo. Digam-me: Algum golfinho seria insensato o que baste para ser um golfista? Só mesmo um homem para ser um humanista. Para acreditar em si próprio como alguém que merece a complacência de deus e o reconhecimento do espírito santo (entidades que - mesmo a propósito - ele próprio criou).
Henry George escreveu: "Homens e gaviões alimentam-se de frangos. Se aumenta a população de gaviões, diminui a de frangos. Mas se aumenta a população de homens, a população de frangos cresce também." A humanidade é um artificialismo, uma doença, uma disfunção endémica e imperialista, um problema na equação das coisas.
Depois: não sou um humanista porque as pessoas incomodam-me. Incomodam-me na praia e na estrada. Incomodam-me no cinema e na rua, incomodam-me no Verão e no Inverno, de manhã e à noite, incomodam-me mesmo e especialmente quando eu não quero ser incomodado. Incomodam-me os vizinhos, os carteiros, os técnicos de telemarketing, os arrumadores, os que passeiam, os que estão à espera, os que compram, os que vendem, os que trabalham, os que roubam, os que matam, os que esfolam; incomodam-me os que cravam, os que choram, os que perdem, os que ganham, os gordos e os magros, os mártires, os heróis, os que vão à pesca, os que vão para a festa e os que vêm da festa e os que jantam no mesmo restaurante que eu escolhi para não ser incomodado! Incomodam-me as filas de gente e os supermercados e as manifestações e os encontros de motards e as eleições autárquicas e a feira popular e as excursões e os espectáculos de circo com as criancinhas aos berros e os festivais de rock e os festivais de jazz e os festivais de loucura e os festivais de morte e os festivais de estupidez e o barulho estrondo que fazem dentro da minha cabeça!
Não há lugar de sonho no mundo que não passe rapidamente a pesadelo depois de ter sido infectado por pessoas. Não há sossego, se há pessoas. Não há paz, claro que não pode haver paz, quando há gente no cenário.
Schopenhauer escreveu: "Não se pode atribuir outra finalidade à nossa existência, senão a de nos ensinar que, para nós, seria melhor não existir".
A seguir: não sou um humanista porque o humanismo sempre levou certos incompetentes a pensarem que estavam à altura de tomar conta dos outros incompetentes todos. Um erro cujas consequências foram muitas vezes devastadoras para a... humanidade. Mais a mais, é por causa das derivações do humanismo em ismos diversos que as pessoas acreditam que podem ser donas do seu destino, como se isso quisesse dizer alguma coisa ou tivesse alguma importância gloriosa na estrutura fundamental do universo. Gaetano Mosca escreveu: "A igualdade absoluta nunca existiu nas sociedades humanas. O poder político nunca foi e nunca será fundado sobre o consentimento explícito das maiorias. Foi e será sempre exercido por minorias organizadas que tiveram e terão os meios, variáveis consoante o tempo, para impor a sua supremacia sobre as multidões".
Não é acreditando na santidade olímpica de um predador cruel e facínora, que se governa o animal. Assim, é-se apenas vítima dos seus piores instintos.
Mais: o humanismo é um tique egotista para nos sentirmos bem com a mediocridade e a ferocidade e a ignorância alheias. É uma maneira de, desculpando os outros, aliviarmos a nossa própria culpa. Só que o homem é o único e o derradeiro culpado. Camus escreveu: "Não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos".
Acresce que: o humanismo é uma assumpção de filósofo caloiro. Herbert Spencer escreveu: "Ninguém pode ser perfeitamente livre até que todos sejam livres; ninguém pode ser perfeitamente moral até que todos sejam morais, ninguém pode ser perfeitamente feliz até que todos sejam felizes". Ora, se todos fossemos perfeitamente livres e perfeitamente morais e perfeitamente felizes, seríamos ainda assim capazes de discernir o que é isso da perfeição? Seríamos ainda assim vítimas de um pensamento humanista? Se o infeliz axioma existe é precisamente porque decorre da condição imperfeita, maliciosa, corruptora, degradante, vexatória e pestilenta do bicho homem. É porque sabemos que não prestamos para nada, que somos uns brutos e que estamos indefesos, que nos obrigamos à auto-comiseração.
Para terminar: não sou um humanista porque gosto apenas das pessoas de quem gosto. Não tenho amor por estranhos nem ternura por desconhecidos. Muito por causa disso não faço minhas as causas da multidão. Nem pretendo que sejam colectivas as minhas convicções individuais. Max Stirner escreveu: "Há tanta coisa a querer a ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo!"
quinta-feira, agosto 18, 2005
Voando Sobre um Ninho de Corvos
(Original de 1993 em cinco posts)
POST PRIMEIRO
De súbito abrem a porta. Não é o pequeno-almoço, é mais um psiquiatra. Novato. Não há melhores e mais prestáveis cobaias no mundo clínico que os loucos e, entre os loucos, os furiosos. Os que rasgam cortinas e partem as cadeiras e berram como lobos ao luar e trepam pelas paredes; os que mordem a sério e cospem a valer e agridem os gorilas da segurança; os que espumam da boca e pontapeiam as enfermeiras na boca e são enfiados em camisas de forças antes que um corvo alcance a maturidade. Os loucos furiosos que são enfiados em camisas de forças antes que um corvo alcance a maturidade são o Santo Graal dos laboratórios de investigação psiquiátrica.
O tipo diz-me qualquer coisa que não percebo, repete-se com insistência e eu insistentemente continuo desentendido: nunca cheguei a ser fluente no idioma destes gajos. Fazem perguntas cretinas e querem saber tudo para escarrapachar nos seus mestrados e nas suas pós-graduações para impressionar catedráticos tão ignorantes como eles, mas mais velhos. Generalizando, acho que são extremamente bisbilhoteiros. Bisbilhoteiros e ininteligíveis, autênticos marcianos formados em medicina, criaturas de um pesadelo em BD. Quero o meu pequeno almoço. É inadmissível doutor, até os loucos - sobretudo os loucos - têm o direito inalienável à primeira refeição do dia. A insanidade não se alimenta assim, a pão e água e jejuns forçados. Se querem as sintomatologias, façam favor de contribuirem com as vitaminas!
O rapazote tenta comunicar algo, é um facto. Vá lá saber-se o quê. Primeiro a paparoca, depois a charada. É o meu lema, é o meu tema, é a fome - a mais negra de todas as carências, a mais apertada de todas as necessidades. Mesmo um doido sabe isso. Doutor, seja sensato, traga-me ovos mexidos, torta de ananás, sumo de laranja, pão de noz, Mozart, mulatas de seios vermelhos; traga-me batatas fritas e o conduto da metafísica, traga-me crocodilos em conserva, enfermeiras em calda, salsichas às rodelas, torradas com compota de foca e antes do banquete, traga-me o aperitivo de ser livre e por fim traga-me um belo Bairrada tinto para regar esta infelicidade de ter um vazio enorme no estômago e um psiquiatra de Marte na cela do hospício mais infecto de todos os infectos hospícios do universo. (cont.)
terça-feira, agosto 16, 2005
domingo, agosto 14, 2005
Este é grande.
Gosto à brava deste aventureiro marinheiro. Casado com uma mulher nobre e fiel, sabe que pode partir para a viagem sem perigos de desonra. É esperto e é romântico (rara alquímica!). Gosto do Ulisses porque o homem não usa a cabeça só porque dá jeito ao elmo, tem presença de espírito e é assertivo e é pertinaz e resolve problemas e segue o seu caminho à procura não se sabe bem do quê. Isto, claro está, para além de estar sempre a querer regressar a casa (um gajo que percorre todo o mundo antigo para conseguir chegar a casa desperta-me uma ternura imensa). Gosto deveras deste construtor de barcos e de cavalos, deste engenheiro da aventura que - protegido por Atena, a Deusa dos Olhos Garços - se faz um herói como deve ser. E até mais que um mito grego, solidifica-se num deus católico e irlandês. Não é de se meter em brigas, mas vence a barbárie da violência, com violência se necessário for, com astúcia se proveito de superior qualidade lhe trouxer a inteligência. É corajoso mas não é parvo, e passa montes de tempo na proa, a perscrutar o horizonte mediterrânico, na senda da origem das coisas. Gosto dele.
Este é pequeno.
Não gosto nada deste guerreiro interesseiro. Não gosto deste gajo que faz birras na presença de reis, que é invejoso de escravos e, mais cruel que valente, mais mercenário que soldado, permanece um enormíssimo maricas (afinal, quem é que alguma vez morreu com uma seta enfiada no tornozelo?). Armado em parvo e armado aos cucos, amantiado com um primo imberbe (e péssimo esgrimista), esmagando exércitos com a sua magnífica Excalibur de calibre helénico 3000 AC, Aquiles é, mesmo assim, um frouxo. É um frouxo porque faz tudo pelas razões erradas. Até quando entrega a Príamo o corpo morto e violentado do seu filho, o cavaleiro não é nobre porque fica pequenino de remorsos. Depois de ter cavalgado as sete colinas de Tróia com o cadáver de Heitor de rojo pelo mato, insultando de tragédia e ignomínia a alma troiana, corrompendo rituais sagrados e retirando ao seu adversário a glória da morte em combate, Aquiles é seguramente o bandido palhaço que vai ter remorsos. Não gosto dele.
sábado, agosto 13, 2005
Ode ao Coentro
O mar das ameijoas sabe-me a seara lavrada:
bebo depois a sopa açorda - água de um moínho,
salpicada pelo tempero de um pico daninho.
Dizes-me coisas que voam pelo fluir da enseada
e confias em mim para me perder no caminho.
Essas aves são as palavras que bebo como vinho.
Conforta-me o gosto bravio da erva cozinhada
e o filete de pata roxa tem uma pitada de cominho.
É do teu lado da planície que a garça faz o ninho.
E quando se fecha a tarde no abraço da nortada,
é o aroma da flor que me chama, e eu entro
na tasquinha do Sr. António onde impera o coentro.
bebo depois a sopa açorda - água de um moínho,
salpicada pelo tempero de um pico daninho.
Dizes-me coisas que voam pelo fluir da enseada
e confias em mim para me perder no caminho.
Essas aves são as palavras que bebo como vinho.
Conforta-me o gosto bravio da erva cozinhada
e o filete de pata roxa tem uma pitada de cominho.
É do teu lado da planície que a garça faz o ninho.
E quando se fecha a tarde no abraço da nortada,
é o aroma da flor que me chama, e eu entro
na tasquinha do Sr. António onde impera o coentro.
quarta-feira, agosto 10, 2005
mixed feelings
Estou exultante porque chegaram os valentes astronautas à boa e velha terra sãos e salvos (e com eles talvez todo um programa espacial). É o regresso do velho mito grego do retorno, agora com redenção da tecnologia humana, em directo na CNN e com um final feliz ainda por cima.
Estou triste porque não vivo ainda e não viverei nunca a idade matura da conquista espacial; que é o mesmo que dizer: da expansão verdadeiramente endémica do Virús Sapiens-Sapiens. Não consegui encontrar o link para a notícia de 5 de Agosto do DN mas acreditem em mim: um dos utensílios que o astronauta reparador levou consigo para consertar a estrutura cerâmica que impede o veículo espacial de se volatilizar quando entra na atmosfera terreste foi... fita adesiva. Sim, ou o Diário de Notícias está a abusar da minha credulidade ou a malta da NASA achou de facto pertinente apetrechar o seu mecânico estelar com a alquímica ferramenta que nós, cá em baixo, usamos para os mais prosaicos fins quotidianos, como selar uma encomenda postal ou isolar a corrente eléctrica. É verdade que o santo homem só precisou mesmo de alguma habilidade manual para executar a inédita tarefa, mas, por deus, a fita adesiva ia servir para quê?
O pomar da História está a apodrecer de provas: não é o estado que lança a humanidade para o mistério do porvir. É, sobretudo, a iniciativa individual - ou a ganância coorporativa - que movimenta com eficácia o homem na incessante viagem que faz do passado para o presente. A NASA está já fora do seu tempo. É corpo morto. Porque o tempo da conquista espacial é agora, o das empresas privadas.
Um Verão do Lado de Swan.
O Guadiana Internacional; que vibra com as marés oceânicas e que, por isso, mantém este caudal majestático sobre o deserto acidentado do Sudeste Alentejano; é uma nação de memórias, um país líquido e prenhe de castros antigos e ódios ancestrais, de margens abrutas e ventosas com chilrreantes canaviais que de noite competem com o silêncio ensurdecedor das estrelas objectivamente falaciosas em cada pulsar. Combray, o idílio de Proust - esse anjo monocórdico que me fala por santas metáforas (que me fala de aristocratas que limpam o monóculo como quem muda um penso), Combray, o verdadeiro paraíso perdido, não tem o Guadiana de grande caudal salgado, agreste e venerável, falso de correntes, perigo fluvial e amigo de marinheiros, que lhe dê banho à literatura! Combray, por todo o amor que Proust tem pelos nomes, não ganha em glória nem em sonoplastia a Guerreiros do Rio, Guerreiros do Rio, caramba, um nome de uma terra como devem ser os nomes das terras que marcam a presença funesta dos homens!; um etimologismo grandioso e quizilento onde se encerra a paz que há no mundo e a insuficiência que há no homem. Combray, claro está, é um terreno para construtores de utopias: não dá lugar às realidades comesinhas da história ou da geografia e envolve Swan no primeiro mistério da existência, ele que é sujeito primordial do sindroma de Adão. Odette, o segundo patamar metafísico, substitui o pecado por culpa e, talvez por isso, lembra-me não o Guadiana mas antes o Cardeal inverso deste Alentejo que me liberta, e nele uma boca de sarjeta aberta sobre o tecido aldeão da Zambujeira, cuspindo a céu aberto e fechada rua o mijo que eu deitei por fora na casa de banho de um bar cujo nome obsceno suicidaria de pronto o bom do Marcel. Sem preocupações com a MTV, Proust passa ao lado do Festival do Sudoeste e vinga-se em Swan que se perde dentro da leitura que faço dele, uma espécie de rapto trans-material (beem him up, Scotty), para o transportar até ao reino da luz oblíqua, principado da razão pura. Passam as horas e esquecem-se os anos e as palavras permanecem estáticas, perfeitas, pérfidas e divinas. Swan deambula pelos corredores dramáticos do amor à procura em Vermeer de uma saída para o tédio, afinal fingindo e fugindo como eu da multidão que suja a bela paisagem flamenga da Costa Vicentina. Swan, o indisposto e indolente, o autómato da emoção, sem um rumo e expoliado de destinos, reverso inverso de um sentido para a vida - como um escravo regularmente sodomizado por deus - irmão gémeo de um nado morto, abandonado no ventre imenso de uma história que vive para além da cronologia relojoeira do Sapiens, nobre sobre a tragédia que o humilha, lembra-me outro amigo de Verão: Bach, ele mesmo maior que os deuses, compondo música celestial para adormecer um simples príncipe ou anunciando gloriosamente a entrada física e abjecta de um reles aristocrata na Câmara da Liga; Bach desperdiçando o talento extra-terrestre em merdas, como Swan ao sol negro do amor anti-cristão pela Senhora de Cressy.
Neste Verão, houve um certo paragrafar de Proust, um certo frasear de Bach, um certo conversar no Oceano, uma certa paixão que nasce quando amamos subitamente pessoas que conhecemos de súbito, outra certa perdição que nasce quando amamos para sempre alguém que sempre amámos, um certo amigo que acorda e sorri - e que só por isso nos faz felizes -, um sereno mergulhar no abismo de uma certa Praia, uma específica e romanesca sabedoria de um certo Rio, um determinado ladrar grato de um cão que amamos. Neste Verão houve consubstância ontológica. Afinal, é bom ter férias.
Dramaturgia do crime (ou a má criação)
Downtown Los Angeles, quarto de hotel manhoso.
O cadáver estende-se horroroso
num disparate de fragmentos coagulados
sobre a colcha, a alcatifa e os cortinados.
Philip Marlowe apaga o cigarro na poça de sangue mais à mão,
coça o nariz e diz fodasse, que puta de confusão.
Agatha Christie ruburiza numa vitoriana censura da sintaxe
enquanto Sherlock Holmes enfia a lupa nos invólucros usados do tampax.
Chega entretanto Colombo, coxeando da perna boa e de gabardine infecta
desconfia logo de um incógnito penetra;
atrás vem Ventoinha, o inspector que detecta
a arma do crime: uma escova de dentes de afiadas cunhas
com que Perry Mason se entretém a tirar o sebo da unhas.
Crime disse ela, Miss Marple que entra em cena,
já bolorenta de atrites e demais maleitas de madalena,
procurando o amparo de Hercule Poirot que em dieta de emoções
vai cofiando o bigode como quem coça os colhões.
Todos contra todos, decidem-se a resolver o mistério
para redenção da hotelaria e salvação do império.
Até que Marlowe se chateia e vai de boleia,
até que Agatha se irrita e desabita,
até que Sherlock se aborrece e desaparece,
até que Colombo se mira e retira,
até que Ventoinha se perde e despede,
Até que Mason se corta e sai pela porta,
Até que a velha tralha se espalha,
até que Hercule se basta e leva a pasta,
para não ficar ninguém no quarto manhoso
a não ser o cadáver horroroso
que se suicidou às postas
(por um negócio de apostas
em cavalos doentes),
com uma escova de dentes.
O cadáver estende-se horroroso
num disparate de fragmentos coagulados
sobre a colcha, a alcatifa e os cortinados.
Philip Marlowe apaga o cigarro na poça de sangue mais à mão,
coça o nariz e diz fodasse, que puta de confusão.
Agatha Christie ruburiza numa vitoriana censura da sintaxe
enquanto Sherlock Holmes enfia a lupa nos invólucros usados do tampax.
Chega entretanto Colombo, coxeando da perna boa e de gabardine infecta
desconfia logo de um incógnito penetra;
atrás vem Ventoinha, o inspector que detecta
a arma do crime: uma escova de dentes de afiadas cunhas
com que Perry Mason se entretém a tirar o sebo da unhas.
Crime disse ela, Miss Marple que entra em cena,
já bolorenta de atrites e demais maleitas de madalena,
procurando o amparo de Hercule Poirot que em dieta de emoções
vai cofiando o bigode como quem coça os colhões.
Todos contra todos, decidem-se a resolver o mistério
para redenção da hotelaria e salvação do império.
Até que Marlowe se chateia e vai de boleia,
até que Agatha se irrita e desabita,
até que Sherlock se aborrece e desaparece,
até que Colombo se mira e retira,
até que Ventoinha se perde e despede,
Até que Mason se corta e sai pela porta,
Até que a velha tralha se espalha,
até que Hercule se basta e leva a pasta,
para não ficar ninguém no quarto manhoso
a não ser o cadáver horroroso
que se suicidou às postas
(por um negócio de apostas
em cavalos doentes),
com uma escova de dentes.
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