À medida que vou entrando mais profundamente na obra de Richard Zenith, a leitura vai ficando mais desagradável. E,
como já suspeitava, parece que a mania de biografar Pessoa utilizando cenários que ele não viu, sensações que não experimentou, conhecimentos que não assimilou e episódios que não viveu, de forma a dar ao biógrafo liberdade para escrever sobre os assuntos que lhe derem na real gana, pegou, a partir do momento em que Cavalcanti escreveu e, por infelicidade, publicou a sua versão esquizofrénica e falaciosa da vida do grande poeta.
Zenith tenta aliviar o peso do fardo que transporta por ser um anglo-saxónico branco injectando este trabalho de um anticolonialismo militante e de um revisionismo histórico que, em primeiro lugar, nada tem a ver com o pensamento de Pessoa (pelo contrário) e, depois, só muito indirectamente se relaciona com a sua vida. E quando digo muito indirectamente o que quero dizer é que passávamos todos muito bem (e a memória de Pessoa ainda melhor), sem os ataques epiléticos de ideologia woke a que o americano sujeita o leitor.
Logo na abertura do sexto capítulo, o autor quer fazer-nos querer, sem que para isso exista qualquer evidência, que um menino de 11 anos estava emocional e existencialmente envolvido na chegada de Ghandi, na altura um advogado activista, ao porto de Durban. Reparem bem neste parágrafo escandalosamente especulativo:
"Se não leu as notícias nos jornais locais, ouviu certamente a mãe e o padastro a discutirem o assunto, e, numa viagem ao centro com ela ou com ele, deve ter visto os brancos encolerizados que se reuniram ao redor do Hotel Central em West Street. Tinham formado uma comissão para se operem à atracagem de dois navios provenientes da Índia, um dos quais trazia de volta Mohandas K. Ghandi."
Tudo isto é ficção e mais nada. Duvido muito, logo à partida, que o cônsul português discutisse com a mulher - e muito menos com o enteado infante - as inconveniências da política do advogado indiano. Duvido ainda mais de que os "brancos encolerizados" que se reuniam no Hotel Central estivessem lá reunidos e encolerizados 24 sobre 24 horas, de tal forma que fosse impossível ao menino, uma vez passeando na West Street, não reparar neles. Duvido com maior intensidade até que, para além das autoridades municipais e portuárias e de alguns líderes civis, a chegada de Ghandi fosse um assunto incontornável na sociedade de Durban. Mas sobretudo duvido que Fernando Pessoa tivesse algum interesse nisso ou que alguma vez, até esta idade, tivesse ouvido falar no herói que é tão grato à imaginação de Zenith.
Entretanto, começo a perceber porque é que esta biografia conta para cima de mil páginas: só com Ghandi, já o autor perdeu umas boas vinte e a descrição das circunstâncias e dos episódios da guerra Anglo-Boer também consomem outras tantas, apesar de ser o próprio Zenith a confessar que:
"É difícil dizer se Fernando, então com onze anos, ficou insensível ao sentimento pró-britânico que arrebatou a cidade de Durban."
Zenith não é amigo do império britânico. E no seu devaneio militante, também aproveita para criticar o seu próprio país pela guerra Filipo-Americana. O que é que Fernando Pessoa tem a ver com isso? Nada, coisa alguma, nicles, népia, zero. É só assinalar virtudes políticas de plástico, a despropósito e com a mais chocante ausência de pudor que se possa imaginar.
Se Pessoa alguma vez manifestou hostilidade para com a cultura britânica e pelo seu império, foi a propósito do Ultimato inglês de 1890, quando escreveu o famoso "Ultimatum", 27 anos mais tarde e pela mão de Álvaro de Campos. Há no entanto que dizer que nesse brilhante manifesto modernista, o poeta ataca toda a cultura europeia e não apenas a britânica. Excepção feita a esta manobra de diversão, há que reconhecer que o ódio do biógrafo aos bretões não era partilhado pelo seu biografado.
A verdade é que Richard Zenith está convencidíssimo que é uma pessoa moralmente espectacular. E que, se fosse um colono inglês a viver na província de Natal no virar do Século XIX, seria por certo um campeão dos direitos humanos como eles são considerados no século XXI. E mergulharia nas águas do porto para saudar Ghandi como um Deus redentor.
Portanto: estou a ler uma biografia de Fernando Pessoa escrita por um imbecil sem nome.